Roma... Veneza... Trento
«(…) Dom frei João Soares
entregava-me, para a guardiania da Terra Santa, trinta moedas de ouro em
memória dos trinta dinheiros de Judas. Em breve farei também minha peregrinação
e visitar-vos-ei em Jerusalém. O arcebispo de Braga, dom frei Bartolomeu dos
Mártires, também estava, ao pé de frei Bonifácio de Aragusa. Que também ele
partia, dizia-me abraçando-me, mas em sentido contrário, caminho da sua
diocese. O seu rebanho, as suas ovelhas, compreendia? Já a bordo, da amurada
olho a multidão que acena com lenços. Boa viagem! Que Deus vos acompanhe! Tende
cuidado convosco!, é a voz forte e timbrada do padre Bonifácio que vem lá de
baixo, do cais. Entre as muitas cabeças, vislumbro o olhar curioso de Joseph, é
dia de Santa Bárbara, quatro de Dezembro de 1562, uma sexta-feira ao romper da
alva.
A
Tempestade
Cá vamos!, murmurou emocionado frei
Zedilho, o rosário de grandes camândulas entre os dedos. Estávamos debruçados
na amurada apinhada de passageiros e rodeados dos seis irmãos franciscanos que
se haviam atrasado e tinham embarcado connosco. A terra começava a alongar-se,
a fugir, a perder a nitidez de cores e formas, a tornar-se uma diluída mancha inflada.
Era todavia a paisagem interior que me ocupava. Ao partir, em vez de sentir
saudades de uma terra que não era a minha e que se afastava e esbatia nas
brumas do amanhecer, apurava os olhos da esperança na expectativa de ver
aproximar-se finalmente, vindo dos nevoeiros dos caminhos desconhecidos, esse
algo indefinido de que eu tinha uma necessidade esfomeada desde que me
conhecia. Cá vamos!, sussurrei também. Soprava um próspero vento de poente e a
nau, grande e formosa, chamada Sanuda,
sulcava as ondas com rapidez e leveza. Assim passamos a Istria quase toda,
mas quando começamos a costear a Dalmácia acudiu-nos vento do sudoeste, tão
áspero e forte que fomos constrangidos a procurar abrigo. Fizemo-lo num lugar
de nome Cabeça de São Pedro, do lado da Istria, Albânia, Grécia. No Adriático
são pouquíssimos, no espaço de duzentas léguas, os portos que se podem tomar da
parte da Itália, apenas Ancona, Brundísio e Otranto oferecem segurança, mas
ainda assim as naus só os buscam quando têm neles que negociar. O vento ia em
crescimento, tornava-se ciclónico quando a noite caiu. Embrulhado na minha
manta, sentia-o zunir pelas frinchas, assobiar nas enxárcias. Zimbrava o barco
da popa à proa, rangendo e guinchando. Principiei a sentir-me agoniado. Levantei-me,
saí do meu camarote aos apalpões, tropeçando aqui e ali nos colchões dos
companheiros de viagem que dormiam na coberta. Subi as escadas que levavam ao
convés: precisava de alijar carga. Cá fora o vento fustigava e era necessário
arrimar-me bem às paredes, ao que encontrava, para não ser arrastado. Estava
escuro, mas a espaços as nuvens que doidejavam no céu numa correria infrene
deixavam lampejar uns clarões de luar. O vomito assomava-me à garganta,
cheguei-me à amurada, tremendo e cheio de suores frios, ourado. Assim que
lancei, permaneci uns momentos muito quieto, ofegante. Perto de mim senti um
arfar desassossegado, angustioso. Pensei vagamente que alguém, como eu, estaria
agoniado. Pouco e pouco o meu corpo recuperava o equilíbrio, a respiração
tornou-se normal e calma, o mal-estar desaparecia. Soergui-me apurando o
ouvido. Aquele arfar continuava, agora mais apressado, mas de súbito dei conta
de que havia dois ritmos e timbres diferentes nesse respirar e suspirar doloroso.
É
mais que uma pessoa que está mal disposta, pensei eu, procurando ver no escuro.
Por instantes o luar apareceu e eu pude, num relance, distinguir dois vultos
que junto de um rolo de cordas se enlaçavam. A escuridão recaiu e os gemidos
aumentavam confundindo-se com a ventania. Tolerante, por experiência, com
aqueles que se amam, dispunha-me a retirar-me quando um clarão mais forte tornou
nítidas as formas: um jovem estava de borco sobre as cordas e um homem abraçando-o
pelas costas sodomizava-o!... Corri para as escadas e, como pude, meti-me na
cama a tentar adormecer. Onde estavam as amuradas para o vomito da alma?...» In
Fernando Campos, A Casa do Pó, Difel, 1986, Editora Objectiva, Alfaguara, 2012,
ISBN 978-989-672-114-5.
Cortesia de Difel/Alfaguara/JDACT