Porto de Cádiz. 7 de Janeiro de 1748
«(…) Uma noite, o oleiro não
desceu. Na seguinte tampouco. Na terceira, sim, o fez, mas em lugar de ir para
ela dirigiu-se à porta da oficina. Abriu-a e deu passagem a outro homem, depois
lhe indicou onde se encontrava Caridad. O oleiro esperou junto à porta que o
outro satisfizesse seus desejos, recebeu dele, e depois o despediu. A partir
daquela noite, Caridad deixou de trabalhar na oficina. O homem a encerrou num
quartucho do térreo, sem ventilação, e colocou um colchão e um urinol junto a
alguns trastes inservíveis. Se criares problemas, se gritares ou tentares
escapar, eu te matarei, ameaçou-a o oleiro na primeira vez que lhe levou de comer.
Ninguém sentirá tua falta. É verdade, lamentou-se Caridad enquanto escutava o homem
pôr a chave na porta: quem ia sentir falta dela? Sentou-se no colchão com a
tigela de refogado de verduras nas mãos. Nunca antes a haviam ameaçado de
morte; os senhores não matavam seus escravos, valiam muito dinheiro. Um escravo
servia para toda a vida. Uma vez adestrados, como havia sido Caridad em menina,
os negros alcançavam a velhice em suas veigas tabaqueiras, nos seus trapiches
ou nos seus engenhos de açúcar. A lei proibia vender um escravo por maior
quantia do que havia custado, razão por que nenhum senhor, depois de haver-lhe
ensinado um ofício, se desfazia dele; perderia dinheiro. Podiam maltratá-los ou
forçá-los até a extenuação, mas o bom capataz era aquele que sabia onde se
encontrava o limite da morte. Eram os escravos que tiravam a vida; no amanhecer
menos pensado, a luz ia descobrindo a silhueta do corpo inerte de um negro
pendurado numa árvore…, ou talvez de vários deles que haviam decidido
acompanhar-se na fuga definitiva. Então o senhor se encolerizava, como quando
alguma mãe matava seu recém-nascido para livrá-lo da escravidão ou como quando
um negro se mutilava para não trabalhar. No domingo seguinte, na missa, o sacerdote
do trapiche lhes gritava que aquilo era pecado, que iriam para o inferno, como
se pudesse existir um inferno pior que aquele. Morrer? Talvez, sim, disse-se Caridad,
talvez tenha chegado a hora de fugir deste mundo onde ninguém me espera. Nessa
mesma noite foram dois os homens que desfrutaram dela. Depois o oleiro voltou a
fechar a porta, e Caridad ficou na mais absoluta escuridão.
Não pensou. Cantarolou durante o
que restava da noite e, quando os primeiros raios de luz se infiltraram entre
as frestas das madeiras do quartucho, rebuscou entre os trastes até encontrar
uma velha corda. Pode servir, concluiu após puxá-la para verificar seu estado.
Amarrou-a ao pescoço e subiu numa caixa desconjuntada. Lançou a corda por cima
de uma viga de madeira, sobre sua cabeça, esticou-a e deu um nó na outra
extremidade. Em algumas ocasiões havia invejado aquelas figuras negras que pendiam
das árvores rompendo a paisagem da veiga cubana, livres já de sofrimento. Deus
é o maior dos reis, clamou. Só desejo não me converter numa alma penada. Saltou
do caixote. A corda aguentou seu peso, mas não a viga de madeira, que se
quebrou e lhe caiu em cima. O estrondo foi tal que o oleiro não tardou a
apresentar-se no cárcere de Caridad. Acorrentou-a, e, a partir desse dia, Caridad
deixou de comer e de beber, suplicando a morte até quando o oleiro e seu filho
a alimentavam à força. As visitas de homens da rua se repetiram, geralmente um,
às vezes mais, até que, numa ocasião, um velho que tentava montá-la com
inabilidade se levantou e se afastou dela com agilidade assombrosa. Esta negra
está ardendo!, gritou. Está com febre. Pretendes que me contagie alguma doença
estranha! O oleiro se aproximou de Caridad e pôs a mão na sua testa suarenta.
Vai-te, ordenou-lhe incitando-a
com o pé nas costelas enquanto pelejava por abrir e recuperar as correntes com que
a mantinha presa, agora mesmo, já!, gritou após consegui-lo. Sem esperar que se
levantasse, pegou a trouxa de Caridad e a lançou à rua. Era possível que
houvesse ouvido uma canção? Não era mais que um murmúrio que se confundia com
os barulhos da noite. Melchor apurou o ouvido. Ali estava outra vez! Yemayá asesú… O cigano ficou
parado na escuridão, no meio da veiga de Triana, rodeado de hortos e vergéis. O
rumor das águas do Guadalquivir lhe chegava com nitidez, como o silvar do vento
entre a vegetação, mas… Asesú
Yemayá.
Parecia um diálogo: um sussurro que o solista entoava para depois responder-se
a si mesmo a modo de coro. Virou-se na direcção de que vinha a voz; alguns dos
avelórios que pendiam de sua jaqueta tintilaram. A escuridão era quase absoluta,
rompida apenas pelas tochas do convento da Cartuxa, algo além de onde se
encontrava. Yemayá oloddo. Melchor se
afastou do caminho e se internou num laranjal. Pisou pedras e folhagens,
tropeçou diversas vezes e até maldisse a todos os santos aos gritos, e, no
entanto, apesar de na noite haver ressoado como um trovão, o triste cantarolar
não cessou. Parou entre várias árvores. Era ali, ali mesmo. Oloddo Yemayá. Oloddo… Melchor
entrefechou os olhos. Uma das pertinazes nuvens que haviam coberto Sevilha
durante todo o dia permitiu a passagem de um ténue vislumbre de lua. Então
entreviu uma mancha cinzenta no chão, diante dele, a apenas dois passos.
Avançou e se acocorou até reconhecer uma mulher tão negra como a noite vestida
com roupas cinza». In Ildefonso Falcones, A Rainha Descalça, 2013, Bertrand Editora, 2014, ISBN
978-972-252-815-3.
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