Barcelona, Maio de 1901
«Os gritos de centenas de mulheres e crianças ecoavam nas
vielas da cidade velha. Greve! Fechem as portas! Parem as máquinas! Baixem as
persianas! O piquete de mulheres, muitas delas com filhos pequenos nos braços
ou a tentarem mantê-los seguros pela mão, apesar dos seus esforços para fugirem
e juntarem-se aos que eram um pouco mais velhos, não sujeitos a controlo,
percorria as ruas da cidade velha, incitando os trabalhadores e os
comerciantes, que ainda mantinham abertas as oficinas, fábricas e lojas, a
interromperem a actividade de imediato. Os bastões e barrotes que empunhavam
convenciam a maioria, embora não fosse rara a quebra dos vidros das montras e
uma ou outra rixa. São mulheres!, gritou um velho da varanda de um primeiro
andar, mesmo por cima da cabeça de um comerciante furioso que fazia frente a
algumas delas. Anselmo, eu… O comerciante olhou para cima.
A
sua desculpa foi emudecida pelos insultos e vaias proferidos por muitos dos que
observavam a cena das varandas daquelas casas velhas e apinhadas, morada de
trabalhadores e gente humilde, com as fachadas rachadas, descascadas e com
manchas de humidade. O homem cerrou os lábios, abanou a cabeça e fechou a loja,
enquanto catraios maltrapilhos e sujos cantavam vitória e troçavam dele. Alguns
dos que assistiam à cena sorriam abertamente perante a chacota do grupo de
grevistas precoces; o comerciante não era querido no bairro. Confeccionava e
vendia alpercatas. Não vendia fiado. Não sorria, e tampouco saudava quem quer
que fosse. A catraiada continuou na chacota até que a polícia, que seguia o
piquete de mulheres, se aproximou. Então, desatou a correr em busca da
marabunta que continuava a deslocar-se pelas ruelas da Barcelona medieval, tão
sinuosas quanto sombrias, pois a maravilhosa luz primaveril daquele mês de Maio
não conseguia penetrar na estreita malha urbana, apenas nos andares mais altos
dos edifícios que se erguiam no empedrado. Os vizinhos das varandas calaram-se
à passagem dos guardas-civis, alguns a cavalo, com os sabres embainhados, a maioria com o rosto
contraído, uma tensão que se sentia nos seus movimentos sincopados. Uns e
outros tinham consciência do conflito com que aqueles homens se debatiam: a sua
obrigação era impedir os piquetes ilegais, mas não estavam dispostos a carregar
contra as mulheres e crianças.
A
história da revolução operária em Barcelona estava ligada às mulheres e aos
seus filhos. Eram elas quem, em inúmeras ocasiões, exortavam os seus homens a permanecerem
afastados das acções violentas. Connosco não se atreverão, e somos suficientes
para conseguirmos o encerramento, argumentavam. E assim era também naquele mês
de Maio de 1901, quando os operários foram para as ruas depois de, no final de
Abril, a Companhia de Eléctricos ter despedido os trabalhadores em greve e
contratado fura-greves para os substituir. A greve geral pretendida pelas
associações de operários em defesa dos trabalhadores dos eléctricos estava
muito longe de se concretizar e, apesar de algumas acções violentas, a Guarda
Civil parecia ter a situação controlada na cidade. De repente, um clamor surgiu
nas bocas das centenas de mulheres porque se propagou entre elas a notícia de
que um eléctrico estava a circular pelas Ramblas. Ouviram-se insultos e gritos de ameaça: Fura-greves!, Filhos da
pu…!, Vamos a eles!
As
grevistas acorreram com o passo apressado, algumas quase a correr, à Rua da
Portaferrissa para chegarem à Rambla das Flores, acima do mercado da Boqueria,
uma lota que, ao contrário de todas as outras em Barcelona, como a de Sant
Antoni, a do Born ou a da Concepció, não é fruto de um projecto concreto mas da
ocupação, por parte dos vendedores, da Praça de Sant Josep, um magnífico espaço
porticado; por fim, venceram os mercadores e a praça cobriu-se com toldos e
telhados provisórios, tendo os pórticos dos edifícios, que a rodeavam, sido
transformados nas paredes do novo mercado. As tradicionais paradas de venda de
flores, estruturas de ferro semelhantes a quiosques colocadas frente a frente
ao longo do passeio, estavam fechadas, embora as floristas, muitas delas com as
mãos nas ancas, desafiantes, permanecessem junto aos respectivos
estabelecimentos, dispostas a defendê-los. Em Barcelona só se vendiam flores
naquela zona das Ramblas. No mercado da Boqueria, um número infindável de
carroças de transporte, com os seus toldos e cavalos, esperavam estacionadas em
fila, lado a lado, a escassos passos dos carris do eléctrico. Os animais
reagiram nervosamente à gritaria e à avalancha das mulheres. Poucas prestaram
atenção ao alvoroço de cavalos
empinados, carregadores e comerciantes a correrem de um lado para o outro. O
eléctrico que cobria a linha de Barcelona para Gràcia, que começava na Rambla
de Santa Mónica, junto ao porto, aproximava-se.
Dalmau
Sala tinha seguido o piquete durante o seu itinerário pela cidade velha,
juntamente com muitos outros homens, em silêncio, atrás da Guarda Civil. Agora,
numa zona ampla como era a das Ramblas, tinha uma visão mais completa. O caos
era absoluto. Cavalos, carroças e comerciantes. Cidadãos a correrem, curiosos;
polícias em formatura perante o grupo de mulheres com os filhos que se
colocaram diante deles, a formar uma barreira humana que pretendia separar
todas as outras que se tinham apinhado em cima dos carris do eléctrico para
deter a máquina.
Um
calafrio percorreu Dalmau de cima a baixo quando viu que algumas mulheres
erguiam os filhos e exibiam-nos perante os guardas-civis. Outros catraios, um
pouco mais crescidos, permaneciam agarrados às saias das mães, assustados, com
os olhos muito abertos, esquadrinhando o espaço em busca de respostas que não
encontravam, enquanto os adolescentes, ensoberbecidos pelo ambiente, chegavam a
desafiar os polícias». In Ildefonso Falcones, O Pintor das
Almas, Suma das Letras, 2020, ISBN 978-989-665-961-5.
Cortesia de SumadasLetras/JDACT
JDACT, Barcelona, Ildefonso Falcones, Literatura, A Arte,