«Um dia um homem se levanta e muda de um lugar para outro. O que ele deixa atrás de si para trás e só lhe vê as costas. No Inverno de 1965, Ionatan Lifschitz resolveu abandonar sua mulher e o kibutz onde nascera e crescera. Decidiu sair e começar uma nova vida. Nos seus anos de infância, e na sua juventude, na época em que servia no Exército, sempre estivera cercado por um círculo próximo de homens e mulheres que não paravam de se intrometer na sua vida. Cada vez mais, sentia que esses homens e mulheres o cerceavam, e que bastava de concessões. Na sua linguagem peculiar, eles falavam frequentemente de um processo positivo ou de manifestações negativas, e ele quase deixara de entender o significado dessas palavras. Se estava sozinho à janela no meio do dia e via pássaros voando nas sombras do crepúsculo, aceitava tranquilamente no seu íntimo a ideia de que esses pássaros finalmente morreriam todos. Se o locutor do noticiário no rádio relatava o surgimento de sinais preocupantes, Ionatan sussurrava para si mesmo: Que diferença isso faz? E se saía sozinho à tarde para caminhar junto aos ciprestes queimados pelo sol numa das extremidades do kibutz e um chaver cruzava com ele e perguntava o que estava fazendo lá, respondia sem vontade: Nada, só estou dando uma volta. E de novo perguntava a si mesmo, com assombro: O que faz aqui? Um excelente rapaz, diziam dele no kibutz, só que muito fechado; uma dessas almas sensíveis, diziam. Agora, aos vinte e seis anos, com seu jeito contido ou pensativo, despertara-lhe finalmente o desejo de estar só, sem os outros, de verificar o que mais existia; pois às vezes era assaltado pela sensação de que sua vida transcorria dentro de um quarto fechado, cheio de conversas e de fumaça, onde se desenrolava, sem parar, uma discussão cansativa e muito barulhenta sobre um tema esquisito. E ele não sabia o que era, nem queria se envolver, e sim se levantar e sair e ir para um lugar onde talvez o estivessem esperando, mas não para sempre, e se ele chegasse atrasado seria tarde demais. Que lugar era aquele, Ionatan Lifschitz não sabia, mas sentia que não podia mais demorar. Benia Trotsky , Ionatan nunca o vira na vida, nem em retrato.
Benia Trotsky, que
fugira do kibutz e do país em 1939, seis semanas antes do nascimento de Ionatan,
era um jovem intelectual, um entusiasmado estudante da cidade de Kharkov que
por opção própria se fizera operário de pedreira na Galileia Superior. Ele
passara algum tempo em nosso kibutz e, contrariamente a seus princípios, se
apaixonara por Chava, mãe de Ionatan; apaixonou-se à moda russa, com lágrimas e
juramentos e confissões febris. Apaixonou-se por ela tarde demais, depois de
ela já ter engravidado de Iulek, pai de Ionatan e de ter ido morar com ele no
seu quarto no barracão mais afastado. Esse escândalo aconteceu no fim do Inverno
de 1939 e terminou da pior maneira possível: depois de muitas complicações, cartas,
uma declaração de suicídio, gritos na noite atrás do palheiro, esclarecimentos,
esforços das instâncias do kibutz para acalmar os ânimos, apaziguar e encontrar
uma solução lógica, após muita raiva e ressentimento e um discreto tratamento médico,
chegou finalmente a vez de esse Trotsky fazer a guarda nocturna no kibutz.
Recebeu então a antiga pistola parabélum e ficou de guarda no seu posto a noite
inteira, e somente ao alvorecer, atacado de uma só vez por um desespero total,
foi emboscá-la junto ao barracão da lavandaria, de repente pulou de dentro dos
arbustos, atirou de perto na sua amada grávida e saiu de lá correndo, e com um
uivo pungente, um uivo de cão ferido, correu às cegas até ao estábulo e
disparou duas balas em Iulek, pai de Ionatan, que estava terminando a ordenha
da noite, e atirou no nosso único touro, que se chamava Stakhanov. Por fim,
quando os espantados chalutzim, os pioneiros, ao ouvir os tiros começaram
a acudir e a persegui-lo, o infeliz projetou-se atrás do monte de esterco e
disparou a última bala, apontada para a própria testa. Todos esses tiros
erraram o alvo e não se derramou uma só gota de sangue.
Mesmo assim, o
apaixonado fugiu do kibutz e do país e, por fim, após complicados vaivéns, acabou
se tornando uma espécie de rei da hotelaria em Miami, na costa leste da América.
Uma vez enviou uma grande contribuição, do próprio bolso, para a construção de
uma sala de música no kibutz e uma outra vez escreveu uma estranha carta em
hebraico na qual ameaçava ser, ou pretendia ser, ou talvez se propunha
voluntariamente a ser, o verdadeiro pai de Ionatan Lifschitz. No quarto de seus
pais, numa estante de livros, escondida entre as folhas de um antigo romance em
hebraico chamado Har Hatsom, de Israel Zarchi, o jovem Ionatan encontrou uma
folha de papel amarelada e nela um poema de amor bíblico que aparentemente fora
escrito por Biniamin Trotsky . No poema, o apaixonado chamava-se El’azar de
Marsha, e o nome de sua amada era Azuva bat Shilchi. Nome do poema: Mas o
coração deles não estava certo. E ao pé da folha, a lápis, tinham sido
acrescentadas algumas palavras numa caligrafia a um pouco diferente, uma escrita
redonda e tranquila, mas que Ionatan não pôde decifrar porque eram letras cirílicas.
Todos aqueles anos
seus pais haviam mantido total silêncio sobre o caso do amor e da fuga de Biniamin
T., e só uma vez, durante uma briga séria, Iulek usou as palavras Tivui
komediant, e Chava respondeu num fervilhante sussurro: Ti zabuio. Ti
mordertsu. Os veteranos do kibutz diziam às vezes: Isso é fantástico. Uma
distância de no máximo um metro e meio, que palhaço, nem no touro conseguiu
acertar a uma distância de um metro e meio.
No seu pensamento,
Ionatan buscava um lugar diferente, que lhe fosse adequado, uma nova possibilidade
de trabalhar no que quisesse e de descansar sem estar cercado de gente. Seu
plano era viajar para tão longe quanto possível, para um lugar que não se
parecesse com o kibutz, que não se parecesse com os acampamentos do movimento
juvenil ou com as bases do Exército, ou com as pousadas das excursões ao
deserto, que não se parecesse com as estações nas encruzilhadas, castigadas
pelo vento do deserto e onde sempre havia um odor de espinheiros, de suor e de
poeira, e a acidez de urina seca. Era preciso chegar a um ambiente diferente em
tudo, talvez a uma cidade grande de verdade, que lhe fosse estranha, que
tivesse um rio com pontes, que tivesse torres, túneis, chafarizes esculpidos
como monstros de pedra a esguichar, uns sobre os outros, jactos d’água, e essa água
todas as noites iluminada das profundezas por luzes eléctricas, e às vezes lá
estaria uma mulher desconhecida e sozinha, o rosto voltado para a luz da água,
de costas para a praça calçada com lajes de pedra lapidadas; um lugar entre os lugares
distantes nos quais tudo é possível e tudo pode acontecer, uma súbita
conquista, amor, perigos, estranhos encontros». In Amós Oz, Uma
Certa Paz, 1982, Companhia das Letras, ISBN 978-858-086-291-1.
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