Barcelona, Maio de 1901
«(…)
Não havia muitos anos, quatro ou cinco, Dalmau
cometeu o mesmo desplante perante a polícia; a mãe atrás dele, a gritar,
exigindo justiça ou melhorias sociais, encorajando-o à luta, como fazia a
maioria das mães que interpunham os filhos em defesa de causas que consideravam
superiores, inclusivamente a sua própria integridade física. Por instantes, os
gritos das mulheres provocaram em Dalmau uma embriaguez semelhante à que viveu
quando fez frente à polícia. Na altura, sentiam-se deuses. Lutavam pelos
operários! A Guarda Civil ou o exército carregaram sobre eles algumas vezes,
mas hoje nada disso iria acontecer, disse Dalmau para si, desviando o olhar
para as grevistas que faziam frente ao eléctrico. Não. Aquele dia não estava destinado
a que a força pública atacasse as mulheres; pressentia-o, sabia-o.
Dalmau
não tardou a localizá-las. Na primeira fila, à frente de todas, com o olhar
desafiante, como se fosse o suficiente para deter o eléctrico da linha de
Gràcia que se aproximava. Dalmau sorriu. O que não conseguiriam aqueles
olhares? Montserrat e Emma, a sua irmã mais nova e a sua noiva, ambas
inseparáveis, unidas pela infelicidade, unidas pela luta operária. O eléctrico
aproximava-se fazendo soar a campainha; o sol que se infiltrava por entre o
arvoredo das Ramblas arrancava
centelhas às rodas e aos restantes elementos metálicos do vagão. Uma ou outra
mulher recuou; poucas, muito poucas. Dalmau esticou-se. Não temia por elas; o
eléctrico iria parar. Mães e polícias calaram-se, atentos. Muitos curiosos
retiveram a respiração. O grupo de mulheres que se encontrava em cima dos
carris pareceu crescer sobre si mesmo, firme, tenaz, disposto a ser atropelado.
Parou.
As
mulheres explodiram em gritos de vitória, enquanto os poucos passageiros que
ousaram utilizar o transporte e viajavam na parte superior do vagão, ao ar
livre, sentados ao sol, desciam aos tropeções para fugirem, depois de o
condutor e os revisores, todos fura-greves, terem saltado do eléctrico antes
mesmo de este parar. Dalmau contemplou Emma e Montserrat, as duas com o punho
crispado erguido para o céu, sorridentes, a celebrarem, eufóricas, a vitória
com as suas companheiras. Ainda não tinha passado um minuto quando aquelas
centenas de mulheres se aproximaram do eléctrico. Vamos! Vamos a ele! A Guarda
Civil quis reagir, mas a barreira com as crianças avançou para os agentes.
Foram muitas as mãos que se apoiaram na parte lateral do vagão. Outras tantas,
as que não alcançavam a máquina,
apoiaram-se às costas das grevistas que estavam à frente. Empurrem!, gritaram
várias ao mesmo tempo. Com mais força! O eléctrico balançou em cima das rodas
de ferro. Mais! Mais, mais… Um, dois… O vaivém aumentou ao ritmo do alento que
davam umas às outras. Por fim, um rugido que surgiu daquelas centenas de
gargantas precedeu a queda do vagão. O estrondo confundiu-se com o ruído dos
estilhaços, o entrechocar dos ferros e uma nuvem de pó que envolveu o eléctrico
e as mulheres. Um brado quebrou o silêncio relativo que se tinha instalado depois
de o vagão ter embatido no solo. Saúde e revolução! Viva a anarquia! Greve
geral! Morte aos frades! Mais trabalho e melhores salários. Reduzir as jornadas
extenuantes. Acabar com o trabalho jovem. Pôr fim ao poder da Igreja. Maior
segurança. Casas decentes. Expulsão das ordens religiosas. Saúde. Ensino laico.
Alimentos acessíveis… Mil reivindicações troaram na Rambla das Flores, de Barcelona, para serem
partilhadas por uma mole de gente humilde, cada vez mais numerosa, que se ia
reunindo e aplaudia fervorosamente aquelas mulheres trabalhadoras». In Ildefonso
Falcones, O Pintor das Almas, Suma das Letras, 2020, ISBN 978-989-665-961-5.
Cortesia de SumadasLetras/JDACT
JDACT, Barcelona, Ildefonso Falcones, Literatura, A Arte,