Saulo
A
chegada da Inquisição (maldita). 1490 - 1491
«(…) Curvando-me para bloquear a
vista de quem estivesse vigiando de cima, cortei a parte interna do cós da calça
e enfiei a faca lá dentro. Uma corda foi colocada do navio militar à galé para
transferir o barril de vinho. Uma ponta de uma segunda corda foi amarrada na
minha cintura e a outra ponta foi presa à primeira. Então fui jogado por cima
do costado. Os tripulantes da galé me puxaram através do espaço vazio, mas eu
estava fraco demais para subir pela corda até ao barco deles. O navio soltou
sua ponta da corda, e eu teria sido colhido pela contracorrente, mas ouvi uma
voz gritar da galé: Puxem ele! Puxem ele! Engasgando e tossindo, pousei na
larga plataforma da popa da galé. O homem que dera a ordem se aproximou de mim.
Ele era uma estranha visão, vestido com camisa, calções e perneiras pretas
encimados por uma jaqueta justa azul-pavão com três-quartos de comprimento,
bordada abundantemente com fios de prata. Usava um chapéu extravagante, de um
tipo que eu nunca tinha visto, preto, com uma pena roxa e mais esmerado do que
os usados por pantomimos e actores que fazem representações teatrais em praças
nas épocas do Natal e da Páscoa. Fivelas reluziam em seus sapatos, enquanto uma
agitação de rendados espumava nos punhos e pescoço. Uma argola de ouro pendia
de uma orelha, e, em seu rosto bronzeado, ele deixara crescer um bigode e um
minúsculo cavanhaque. Pelas roupas e modos, vi que era o capitão. Curvou-se
sobre mim e alisou meu cabelo. Virei bruscamente a cabeça para o lado e enfiei
os dentes na sua mão, consequentemente, ele me atingiu com a bengala de bambu
que carregava. Recuei para o canto como um animal selvagem. O capitão da galé
chupou o local da mordida, mas longe de ficar irritado com meu ataque, ele fez
um gesto de aprovação com a cabeça.
Gosto de um jovem com coragem,
declarou. Isso significa que será útil numa batalha e capaz de evitar problemas
para nossos próprios remadores. Está esquelético demais para pegar
imediatamente num remo, mas se fortalecerá para isso se o alimentarmos. Permaneci
onde estava pelo resto do dia, agachado no canto. Naquela noite, ancoramos em águas
rasas ao largo de uma ilha para que os remadores pudessem descansar e comer. O
capitão me deu um pedaço da cabra que assava num braseiro montado no convés,
dentro de uma fornalha de ferro usada para cozinhar alimentos. Comi avidamente.
Haviam-se passado semanas, talvez meses, desde que eu comera carne pela última
vez. O capitão deu uma risadinha enquanto me observava devorar a comida. Calma,
rapaz. Não parece ter tido uma refeição decente em toda a sua vida. Entupir-se
assim tão rápido só vai causar-lhe dor de barriga.
Ele tinha razão. Uma hora depois,
eu estava curvado por causa das cólicas, depois que a comida, de um tipo que eu
não estava acostumado, seguiu seu caminho pelas minhas entranhas. Para minha
surpresa, alguns dos remadores vieram examinar-me. Eu havia imaginado que eles
estivessem acorrentados aos seus bancos, mas apenas um pequeno número, oito no
total, era de escravos ou criminosos aprisionados daquela maneira. O resto,
mais de vinte homens livres, tinha decidido fazer aquele trabalho. Descobri que
homens de vários países se tornavam remadores de galés por opção. Esse era
considerado um trabalho que requeria habilidade, embora árduo, mas o pagamento
e os lucros podiam ser bem recompensadores: além do salário básico, o remador
recebia uma percentagem do lucro obtido pela carga e de qualquer butim
que surgisse no seu caminho. Nessa galé em particular, sob o comando do capitão
Cosimo Gastone, a comida era nutritiva: carne, peixe ou ave, com bastante pão,
queijos fortes e frutas e mel engolidos com vinho. Os remadores eram excepcionalmente
bem alimentados, pois o capitão achava que deviam manter-se no melhor da sua
forma. Eu iria descobrir, do modo mais brutal, que nossas próprias vidas
dependiam da aptidão dos remadores». In Theresa Breslin, Prisioneira da
Inquisição, 2010, Editora Galera Record, 2014, ISBN 978-850-113-940-0.
Cortesia de EGaleraR/JDACT
JDACT, Theresa Breslin, Literatura, Século XV, Religião,