Porto de Cádiz. 7 de Janeiro de 1748
«(…) Estava sentada com as costas
contra a laranjeira, como se buscasse refúgio na árvore. Tinha o olhar perdido,
alheio à sua presença, e continuou cantarolando, em voz baixa, monotonamente,
repetindo vezes seguidas o mesmo estribilho. Melchor verificou que, apesar do
frio, tinha o rosto perolado de suor. Tiritava. Sentou-se a seu lado. Não
entendia o que dizia, mas aquela voz cansada, aquele timbre, a monotonia, a
resignação que impregnava sua voz deixavam transparecer uma dor imensa. Melchor
fechou os olhos, rodeou os joelhos com os braços e deixou-se transportar pela
canção.
Água.
O pedido de Caridad rompeu o silêncio
da noite. Fazia um tempo que já não se ouvia seu cantarolar; havia-se ido apagando
como uma brasa. Melchor abriu os olhos. A tristeza e a melancolia da canção
haviam conseguido trasladá-lo, uma vez mais, ao banco da galé. Água. Quantas
vezes havia tido de pedir água ele mesmo? Acreditou sentir que os músculos de
suas pernas, de seus braços e de suas costas se tensionavam como quando o comitre
aumentava o ritmo da voga em perseguição de alguma nau sarracena. O torturante
apito do comitre aguilhoava seus sentidos enquanto arrancavam a chicotadas a
pele de suas costas nuas para que remasse com mais e mais força. O castigo
podia durar horas. Ao final, com os músculos de todo o corpo a ponto de
rebentar e com as bocas ressecadas, das fileiras de bancos só surgia uma súplica:
água! Sei o que é a sede, murmurou para si. Água, implorou de novo Caridad.
Vem comigo. Melchor levantou-se
com dificuldade, entorpecido após quase uma hora sentado ao pé da laranjeira. O
cigano se esticou e tentou orientar-se para encontrar o caminho da Cartuxa.
Dirigia-se aos hortos do mosteiro, onde viviam muitos dos ciganos de Triana,
quando o cantarolar havia chamado sua atenção. Vens ou não?, perguntou a
Caridad. Ela tentou levantar-se agarrando-se ao tronco da laranjeira. Estava
com febre. Estava com fome e frio. Mas sobretudo estava com sede, muita sede.
Conseguiu erguer-se quando Melchor já se havia posto em marcha. Dar-lhe-ia água
se o seguisse ou a enganaria como haviam feito tantos outros ao longo dos dias
que estava em Triana? Caminhou atrás dele. A cabeça lhe dava voltas. Quase
todos o haviam feito; quase todos se haviam aproveitado dela. Uma série de
luzes provenientes de umas choças amontoadas no caminho iluminou a jaqueta de
seda azul-celeste do cigano. Caridad fez um esforço por seguir seu passo.
Melchor não se preocupava com ela. Andava lentamente mas erguido, altivo,
apoiando-se sem necessidade no bordão de duas pontas próprio do chefe de uma
família; às vezes se lhe ouvia falar à noite. A mulher arrastava os pés descalços
atrás dele. À medida que se aproximavam da ciganaria, a quinquilharia que
adornava as vestiduras de Melchor e o debrum de prata de suas meias refulgiram.
Caridad percebeu um bom presságio naqueles brilhos: aquele homem não a havia
tocado. Iria proporcionar-lhe beber água». In Ildefonso Falcones, A Rainha Descalça,
2013, Bertrand Editora, 2014, ISBN 978-972-252-815-3.
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