sexta-feira, 19 de novembro de 2021

Theresa Breslin. Prisioneira da Inquisição. «Bebi a água e consegui ficar de pé o resto do dia. Ao cair da noite, quando ainda não tínhamos aportado, Panipat ordenou que os homens descansassem os remos e foi confabular com o capitão»

Cortesia de wikipedia e jdact

Saulo

A chegada da Inquisição (maldita). 1490 - 1491

«(…) Atingiu o homem novamente com a mão aberta, então se virou e começou a caminhar de volta para o seu lugar. Rapidamente, aproveitando que Panipat estava de costas para mim, ergui a concha até minha boca e tomei um gole extra de água. Panipat girou num instante. Não vi a correia, apenas senti a ferroada nos meus dedos quando ela se enrolou na minha mão e arrancou a concha à força. Olhei, aturdido, a concha rodar no convés, e então vi, tarde demais, Panipat erguer novamente o braço. Um estalido, e ah!, a terrível mordida quando a ponta metálica da correia talhou meu peito, rasgando o fino tecido de minha camisa. Isso foi apenas um aviso, Ratinho, rosnou Panipat. Eu poderia ter partido a sua carne até ao osso se quisesse. Alguns remadores gargalharam, pois, para eles, qualquer distracção era divertimento. Panipat também gargalhou, ao caminhar de volta para o banquinho. Agora, Ratinho, não beberá mais água hoje até eu dizer que pode.

O dia prosseguiu. O ardente sol de fim de verão queimava o céu e o mar à nossa volta. Surgiu uma leve brisa, e a vela foi içada novamente. Senti o estômago revirar quando um surto de enjoo me atingiu, mas eu sabia que não devia pedir licença para ir vomitar por cima do costado. Engoli a náusea. A fel sufocou a minha garganta, mas continuei com meu trabalho. Por volta do meio da tarde, eu estava febril e cambaleante com calor e exaustão. Panipat diminuiu a voga para deixar que os homens descansassem, mas não creio que ele tivesse demonstrado piedade se um dos homens livres de grande experiência não tivesse interferido. Esse homem era conhecido apenas pelo seu lugar de origem, Lomas, uma aldeia do interior perto de Málaga. Gesticulou com a cabeça para eu ir até ele e então me passou a sua garrafa de água. Beba, ordenou, ou vai desmaiar e nenhum de nós terá mais água. Olhei temeroso para Panipat, mas o mestre dos remadores virou a cabeça e fingiu não ver. Beba, repetiu Lomas. Sou o melhor remador de Panipat. Ele sabe disso e não vai me contradizer.

Bebi a água e consegui ficar de pé o resto do dia. Ao cair da noite, quando ainda não tínhamos aportado, Panipat ordenou que os homens descansassem os remos e foi confabular com o capitão. Sente-se aqui comigo, rapaz, disse Lomas. Desabei agradecido na passarela ao lado de seu posto de remador. Ele dobrou para trás a parte rasgada de minha camisa e, apanhando um frasco guardado por baixo do banco, desenroscou a tampa e o estendeu para mim. Espalhe um pouco deste unguento no seu corte, disse. Ajudará a sarar. Agradeci e, então, quando lhe devolvi o fraco, perguntei-lhe: Nós estamos perdidos? Não completamente, sorriu Lomas, pois seria difícil, até mesmo para o nosso capitão maluco, se perder completamente num mar fechado como o Mediterrâneo, mas já deveríamos ter avistado terra uma hora atrás. Será amanhã antes de vermos Alicante. Levantou-se e cuspiu no mar. Ele nasceu em Gênova, nosso capitão Cosimo, e os genoveses são supostamente os melhores marujos, mas esse aí mal consegue encontrar a Estrela Polar numa noite sem nuvens. Mas, se você é um homem livre, porque aceitou trabalhar neste barco?, perguntei-lhe. A principal habilidade do capitão Cosimo é seu senso para negócios. Ele emprega apenas quatro tripulantes: o intendente, que também cuida do canhão e das outras armas, o carpinteiro-cozinheiro, o veleiro e o mestre dos remadores, Panipat. Nosso capitão é um negociante esperto, ganha mais dinheiro do que os outros capitães, que são melhores navegadores. Embora ele desperdice sua parte em jogatina antes mesmo de deixarmos o porto, a tripulação e os homens livres ganham um bom dinheiro neste barco. Transportamos cargas para portos tão distantes a leste quanto as ilhas Baleares e depois a oeste, para Cádiz, na costa atlântica da Ibéria. O capitão Cosimo tem um faro de especialista para que tipos de mercadorias são desejadas, onde e quem pagará mais por elas. Para fazer uma barganha, não tem ninguém melhor. É uma pena que ele nunca irá se aposentar como um homem rico, mas posso trabalhar dois anos e depois tirar uma folga de seis meses e ir para casa viver do que ganhei com minha mulher e meu filho.

O tripulante que era igualmente carpinteiro e cozinheiro havia acendido carvões no braseiro instalado na proa e começara a cozinhar os peixes frescos que o intendente tinha pescado durante o dia com seu arpão. Fiquei surpreso com a fome que eu sentia. Mais cedo, quando tivera as ânsias de vómito, pensei em nunca mais ingerir comida novamente. Lomas me viu esfregando a barriga. Rá! Você me lembra meu filho. Sempre com fome. Tem o cabelo da mesma cor e quase a mesma altura. Quantos anos tem? Não tenho a certeza, respondi. Dezesseis..., talvez mais. Lomas assobiou entre os dentes. Então não tem sido alimentado regularmente na sua vida, não é mesmo? Eu nada disse. Não foi preciso. Eu sabia que era menor do que o normal e muito magro. Eu podia ver como os meus braços e pernas eram finos. Vá até ao cozinheiro. Diga-lhe que eu o mandei e peça-lhe um pedaço de peixe para comer. Levantei-me. Lomas estendeu a mão para me deter. Puxou-me para perto e falou baixinho no meu ouvido. Escute bem o que vou lhe dizer agora, Ratinho. Precisa tomar cuidado, todas as noites, quando os homens estão fazendo suas refeições e têm permissão para deixar seus postos e irem à privada. Cuide para que, nessa hora, não fique sozinho em nenhum lugar do barco. Não tome vinho. Não importa o quanto os outros tentem convencê-lo. Alguns desses homens livres cortarão sua garganta só por diversão; são piores criminosos do que aqueles mantidos acorrentados na proa, e com mais chances de machucar do que qualquer um dos escravos árabes. Alcançou em baixo do banco e afastou para o lado o saco com seus pertences. À noite, pode dormir aí debaixo». In Theresa Breslin, Prisioneira da Inquisição, 2010, Editora Galera Record, 2014, ISBN 978-850-113-940-0.

Cortesia de EGaleraR/JDACT

JDACT, Theresa Breslin, Literatura, Século XV, Religião,