«(…) Diante de um lago lamacento, ensopado em humidade, a estação, tal como a aldeia, parecia deserta. Ninguém no átrio, ninguém no balcão das bagagens, ninguém à bilheteira, ninguém no cais. Nem o ruído de uma voz, nem de qualquer trabalho. Só o tiquetaque da chuva e o gorgolejar de um ralo invisível. Chegado ao fim do cais o forasteiro, ao voltar para trás, deu de súbito com um empregado de calças de ganga e samarra de surrobeco, parado junto ao relógio e olhando distraidamente a linha. A pergunta respondeu calmamente: O Zé Cavalinho deve estar por aí e já lho indica. Ele é lá desses sítios. E, olhando a chuva, acrescentou: E um grande ponto, o Zé Cavalinho. Tirou do bolso uma lata com tabaco, serviu-se e ofereceu: Uma cigarrada? O forasteiro limpou as mãos e fez o seu cigarro. Entretanto o ferroviário enrolara lentamente o tabaco, lambera a mortalha e procurava os fósforos no bolso. É um grande ponto, o Zé Cavalinho, repetiu pausado, ao mesmo tempo que expelia a primeira baforada. O forasteiro teve a clara ideia de que, antes de saber o que queria, teria de ouvir o outro, enquanto durasse o cigarro. Quando para cá veio trabalhar, ninguém o conhecia, começou ele. Como te chamas, como não te chamas, soubemos que era Zé. Passados dias perguntou-lhe um colega, que por sinal nós cá chamamos o Ruço: Donde é você, ó sócio? De Vale da Égua, respondeu ele. Isto não tem nada de extraordinário. Mas a rapaziada achou-lhe graça, e para que nos havia de dar?
O ferroviário chupou nova fumaça
e continuou, numa voz calma, olhando distraidamente a chuva de novo mais densa
e expelindo o fumo enquanto falava: Começámos a chamar-lhe o Zé da Égua. Não
julgue que ele se zangou. Não senhor. Não o conhece? É bom sujeito, mas tem
assim uma maneira um pouco cómica de dizer as coisas. Um dia disse-nos: Ouçam lá,
rapazes! Se eu sou da égua, sou cavalo, e como sou pequeno, sou cavalinho.
Melhor será chamarem-me Zé Cavalinho. Eu não sei fazer como ele e isto dito por
mim não vale nada, mas, se você o ouvisse e visse, havia de achar graça. E,
dando de quando em quando uma chupada no cigarro e expelindo lentas baforadas,
o ferroviário continuou: Aquilo pegou e daí em diante ficou sendo o Zé
Cavalinho. Todos lhe chamávamos assim, até o chefe, e ele não se mostrava nada
zangado. Aqui está um tipo fixe, dizíamos nós. Ao menos não desconfia.
Até que uma vez o correio deixou
uma carta para ele. Que diabo, pensei eu até pelo nome do Zé Cavalinho. Não
consinto abusar assim do homem, que já não é nenhuma criança. Cada qual tem o seu
nome. Isto pensava eu e parece-me que não pensava mal. Quando depois o
encontrei, disse-lhe assim: Ouça lá, Sr. Zé. Tenho estado a pensar e não acho
bem a paródia que temos consigo. Há ocasião para tudo e por vezes não fica bem
brincar. Qual é o seu apelido? O meu apelido?, disse ele. Sim, o seu apelido,
disse eu. A pelido de quê?, tornou ele. O seu apelido, o seu verdadeiro nome,
disse eu. O meu nome?, disse ele. Mas sou Zé Cavalinho! Deixe-se de
brincadeiras, Sr. Zé, eu pergunto-lhe isto a sério, disse eu. Mas eu também lhe
estou a falar a sério, disse ele, chamo-me José Cavalinho, José dos, Santos
Cavalinho. No momento eu julguei que era a brincar. Mas não. E assim mesmo o
nome dele: José dos Santos Cavalinho. Puxando mais uma fumaça, o ferroviário,
sem se preocupar com o efeito das suas palavras, continuou a olhar a chuva que
escorria do beiral. Andámos muito tempo a pensar que nos divertíamos com ele e
era o patife que se divertia connosco. E encaminhou o forasteiro até à porta. Aproveite
que agora chove menos. Siga sempre junto ao muro. Já ai adiante encontra o
barracão. Ele está lá de certeza e diz-lhe o que você quer». In
Manuel Tiago, Até Amanhã Camaradas, Editorial Avante, 1989, Lisboa, 2001, ISBN
972-747-534-5.
Cortesia de EAvante/JDACT
JDACT, Manuel Tiago, Álvaro Cunhal, Literatura, Comunismo, A Arte,