«(…) Fez-se um breve silêncio e os homens voltaram a olhar-se. Ná, isso não é para aqui, disse outra voz do lado da mesa. Como disse? Vale da Égua. Com certeza estava enganado, informou o velho do casaquinho. Nascera ali no sítio e ali vivera sempre. Nunca ouvira falar. Decerto se enganava. O velho falava e alguns sorriam. Esta não é a estrada para V...?, perguntou o desconhecido. É, sim, respondeu um dos homens. V..., é já adiante. Se não estivesse tanta chuva, viam-se daqui as casas. O desconhecido chegou à porta, olhou a estrada, tirou e torceu o boné e voltou para dentro, batendo violentamente com ele numa das mãos e mostrando o cabelo empastado na testa. Então nenhum dos senhores sabe? Caminho para onde?, perguntou lá do fundo o taberneiro, que ouvira tudo muito bem, mas entendia dever chamar a atenção do desconhecido para a casa onde se encontrava. Vale da Égua, disse um dos rapazitos. O taberneiro estendeu o beiço inferior, o que tanto podia mostrar não conhecer tal sítio como descontentamento porque o forasteiro se não decidia a fazer despesa. Bom, obrigado!, disse o desconhecido. E ajeitando o boné, puxando para-cima a gola do casaco, chegou-se à porta, olhou ainda o céu e fez-se de novo à chuva. Logo adiante encontrou as primeiras casas, acotoveladas ao longo da estrada inundada. Escorrendo em água, a grande aldeia parecia deserta. Só já no coração da terra descobriu, abrigado num telheiro, um homem gordo em mangas de camisa, com os polegares metidos nas cavas do colete. A sua pergunta, o homem acenou ligeiramente com a cabeça, convidando-o a abrigar-se também. Sempre na mesma posição e no mesmo sítio, mirava atentamente o forasteiro, reparando no seu fato modesto repassado. Não, não, vou vencer-te com o lenço a cara e o pescoço.
O outro ficou uns instantes
silencioso. Parecia hesitar, Observou com muito interesse o lenço com que o ciclista
se limpava e voltou depois a olhar para a pasta de couro, para o fato
encharcado, para a estrada inundada e para a chuva caindo. O senhor não é
destes sítios. Não, não sou. E acrescentou, batendo vigorosamente com os pés no
chão para não arrefecer: Quem havia ontem de dizer o dia que hoje ia estar. Não
era difícil, disse o gordo. Ontem choveu toda a tarde e de noite a chuva não parou.
O ciclista compreendeu perfeitamente estas palavras. Elas significavam: Se não
quiseres dizer, não digas o que te obriga a meteres-te ao temporal. Mas não julgues
que me comes por parvo. Ao compreendê-las assim, pensou que fizera mal em
abrigar-se ali.
Tanta chuva é capaz de dar cabo
das culturas. Não dá cabo de nada, replicou o gordo com voz irritada. O mal é
se não chovesse. Vê-se bem que o senhor não trabalha no campo. Se calhar é
viajante. Não, não sou viajante, respondeu o forasteiro. Estou a arrefecer por
estar parado, acrescentou esfregando as mãos e continuando a bater com os pés. Meter-se
a esta chuva é que com certeza não dá saúde, disse o gordo. O ciclista
compreendeu também perfeitamente estas palavras: O que tu queres é ir-te embora
para evitares conversa, mas eu entendo-te muito bem. E o caminho para Vale da Égua?
Sai daqui da terra? O gordo, sempre com os dedos nas cavas do colete, não bulia
do mesmo sítio. O rosto parecia inalterável. Mas nos olhitos avermelhados
adivinhava-se a profunda irritação da curiosidade insatisfeita. Eu sei lá onde
isso fica!, exclamou como se a pergunta fosse um disparate. Sempre a bater os pés
no chão, o forasteiro suspendeu o movimento das mãos que esfregava e voltou bruscamente
a cabeça para o outro. Instintivamente o gordo deu um passo atrás, como
esperando uma agressão. Já o forasteiro, com gestos lentos, ajustava as peúgas
por fora das calças encharcadas, aconchegava o boné à cabeça e a gola do casaco
ao pescoço, agarrava a bicicleta e saía à estrada. Então, bom-dia. Vá com Deus!,
respondeu debaixo do telheiro a voz colérica do gordo. Abrandara o vento,
chovia menos, mas na estrada inundada e cheia de covas, a bicicleta rolava com dificuldade.
O ciclista lembrava-se do que lhe haviam dito: Apeias-te na estação, perguntas
aí e logo te dizem. Não lhe conviera vir de comboio, mas deveria ter-se
dirigido na mesma à estação. Pensando que se havia de ver da estrada, resolveu
não perguntar nada a ninguém até lá chegar». In Manuel Tiago, Até Amanhã
Camaradas, Editorial Avante, 1989, Lisboa, 2001, ISBN 972-747-534-5.
Cortesia de EAvante/JDACT
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