terça-feira, 30 de novembro de 2021

Beije-me onde o Sol não Alcança. Mary del Priore. «Corri para a pilha de Le Miroir Parisien que o trem traz regularmente até Piraí. Vi a crónica: mortes na aristocracia. Os pequeninos filhos da rainha Maria Cristina de Espanha…»

Cortesia de wikipedia e jdact

A bordo do Équateur, Novembro de 1864

«(…) Informaram que o tio de Luís César, certo marquês de Caxias, acaba de ser indicado comandante-geral das Forças Brasileiras e que se prepara uma guerra contra o pequeno Paraguai. O presidente Lopez quer uma saída para o mar e ameaça constantemente Argentina, Brasil e Uruguai. Os três uniram suas forças meses atrás por meio de um acordo conhecido como a Tríplice Aliança. Antes, Lopez já aprisionara um vapor brasileiro e invadira uma longínqua província, certa Mato Grosso: pântanos e índios. Saberei mais quando chegar a terra. Há dez anos, a França assinava o Tratado de Paris, pondo um fim à guerra da Crimeia que fez a fortuna do pai e do nosso tio Garfinkel. Não sou supersticioso, mas gostaria que essa guerra também fizesse a minha. Luís César vai nos apresentar à família. Tudo indica que se trata de gente muito abastada: barões do café. Só não acredito em antecedentes aristocráticos. Os brasileiros gostam de inventar que têm sangue azul. Uma noiva é tudo de que preciso. Alguém que me abra portas. Eu sei, maman. Sangue, património, propriedades. Tudo isso conta. Talvez haja algum problema com a religião. Veremos…

Por fim, peço-lhe: não estrague a educação de Eugène com mimos. Se o pai estivesse vivo não o deixaria tão ocioso. Leve-o para fazer equitação no Bois de Boulogne. A Casa Michaux vende bicicletas em madeira. Aos dezasseis anos, ele já pode conduzi-los. Está tornando-se um jovem balofo e preguiçoso. Soube que já faz apostas entre os colegas do colégio. Será isso defeito de nosso sangue? E, insisto, não vá ao Palais-Royal aos domingos. É dia em que os bilhetes são doados. Não fica bem. Agora o barco dança sobre as ondas e o rumor das vagas golpeia o casco. Vou apagar a vela. Escreverei quando chegar ao Rio de Janeiro. Hoje atravessamos baías e estuários cujos nomes custo a memorizar: Goytacazes, Quissamã, Carapebus, Macaé. Sonharei com tais terras. Bonne nuit, maman. Seu filho, Maurice.

 

1864

Esta manhã, a mãe deu-me um terço de prata. Pediu-me que orasse pelo pai. Quase um ano de luto e ela continua muito abatida. Toda de negro, me assusta quando surge de supetão. Caía uma chuva enquanto eu escrevia. Depois, nada fiz. Entediei-me. Cruzei o terreiro de café e fui até ao hospital dos pretos ajudar tia Maria Gata. Ela perdeu um dedo no monjolo, tem olhos amarelos, e, conhecedora de ervas, cura cambras amarrando barbante vermelho na canela da gente. Gosto de ficar lá, vendo a negra fazer remédio para a botica dos escravos e ouvindo o ranger dos carros de boi que vêm e vão. Juntas, preparamos água da rainha da Hungria com uma tintura de alecrim e outra de lavanda. Tem que macerar um mês, resmungou ela com voz grossa e os beiços tremendo. Contou-me que a receita tinha sido oferecida a certa dona Isabela, por um anjo disfarçado de ermitão. Velha, ela quase não podia andar. Tomou a poção, ficou boa, jovem, linda e o rei da Hungria se casou com ela. Tia Maria Gata sabe tudo. Às quatro horas fui passear, esperando que o dia se acabe. Ele me pareceu bem longo. Comecei a fiar depois do jantar. A mãe leu em voz alta a carta do primo Luís César e recordou que sua mãe, Emiliana, morreu menina em trabalho de parto. Tenho pavor de ter filhos e morrer tão bestamente. Ele chegou de Paris com a esposa russa! Russa, não. Ela é parisiense, mas de família russa. Riquíssimos, dizem. Casa perto do Arco do Triunfo, carruagem e criados de libré.

Corri para a pilha de Le Miroir Parisien que o trem traz regularmente até Piraí. Vi a crónica: mortes na aristocracia. Os pequeninos filhos da rainha Maria Cristina de Espanha, a princesa Czartoryska, o duque de La Rochefoucault. A loja mais frequentada é a Maison Giroux, de onde saem candelabros, móveis e quadros de nomes célebres da arte moderna, seja lá o que isso queira dizer. A moda é a popelina de Irlanda e a lã de cabra com impressão de vasos etruscos. Na Opéra-Comique levam Lara. Céus! Nada terei para conversar com ela. E sobre a Rússia? Pouco sei. Um czar, cidades de sonho sobre planícies geladas, trenós e neve que só conheço de quadros! Primo Luís César explicou que tem uma cunhada, Hélène, casada com um filho do general Magnan, gente muito ligada ao imperador Napoleão III. Luís Bonaparte valeu-se da sua energia de militar para, com a ajuda de um partido, dar o golpe de Estado. Dizem que o general colaborou na revolução governamental, da conspiração à execução. O 2 de Dezembro de 1851, foi obra sua. E na repressão contra a dissolução da Assembleia não poupou ninguém: deixou os resistentes organizarem barricadas, que esmagou de um único golpe. Parece que não gastou nem duas horas no massacre. Na Corte francesa há muitos aristocratas russos. Hélène e Vera são lindas!, insiste a mãe. Têm rostos de madona, mais parecem bonecas de porcelana de Saxe. Não é como o meu, magro, em que saltam olhos de ameixa em calda. Elas, louras, eu, morena. Com essa cara, nunca chegarei a Paris. Saímos ao jardim à noite. Encontramos um vaga-lume. A mãe tinha dor de garganta. Cantei um pouco e a fiz rir». In Mary del Priore, Beije-me onde o Sol não Alcança, 2015, Editora Planeta, 2015, ISBN 978-854-220-588-6.

Cortesia de EPlaneta/JDACT

JDACT, Mary del Priore, Literatura, Narrativa,