Roma... Veneza... Trento
«(…) Reparasse que eu era talvez
a única pessoa, e de certeza o único padre, a quem ele poderia sem receio dar
tal notícia... E, se não tivesse por acaso entrado ali, ele já tencionava
procurar-me, pois sabia da minha presença ... Porque confiais assim tanto em
mim? Conheço-vos muito bem e sei que sois amigo dos judeus. Como me conheceis
tão bem? Começou a desviar a conversa, lá o estava eu a sentir. Ora!
Conhecia-me, era tudo! Fosse a Corfu... Fosse a Corfu!... Calava-se Joseph e,
apesar da minha insistência, só me respondia fazendo com o polegar e o
indicador sinal de que tinha os lábios cerrados. Seria eu judeu?, perguntava a
mim próprio. Aquela estrela não seria o sino-saimão?... Em silêncio Joseph
acompanhava-me amavelmente até à porta, como a convidar-me a sair. Apoderou-se
então de mim uma pressa febril de embarcar, de ir embora... Levantavam-se
obstáculos. Era costume, que já vinha dos Romanos, não se navegar entre quinze
de Novembro e a oitava da Epifania. Havia grandes penas, quer-me parecer que
também a da excomunhão, para quem sem licença fizesse o contrário e só se abria
excepção quando o patrão de um barco manifestava necessidade muito urgente,
como aconteceu com o patrão de uma nau que estava prestes a partir e na qual
frei Bonifácio, eu e frei Antônio Zedilho nos preparávamos para embarcar.
Todavia, com grande arrelia minha, mandou a Senhoria chamar o padre Bonifácio e
terminantemente lhe ordenou que não embarcasse, que era já Inverno e os mares
do Levante muito perigosos. Sentiu muito o guardião de Jerusalém tal
impedimento e, por mais razões que desse, nenhuma lhe foi admitida porque todos
os senhores venezianos lhe tinham muito amor e reverência, tanto por sua muita
virtude e sabedoria como porque havia já sido, uns sete anos guardião de monte
Sião, com grande exemplo de sua vida e não menos proveito dos lugares santos.
Mas se a insistência de frei Bonifácio junto da Senhoria não surtiu efeito, a
minha junto de frei Bonifácio era preciso que não falhasse. Na minha pressa, na
minha impaciência, procurava razão de peso. Que havia três anos a família
franciscana da Terra Santa estava sem recursos, não via frei Bonifácio?
Urgia partir quanto antes a
levar-lhe apoio e conforto. Não me importava de correr o risco da própria vida
... Não era sincero e a mim próprio me soava a falso a minha voz. Acreditou frei
Bonifácio? Não sei. Deu-me muitos agradecimentos pela boa vontade revelada e
procurou dissuadir-me de tal propósito e de tais trabalhos e canseiras,
pondo-me diante os mesmos perigos a si postos pela Senhoria veneziana,
prometendo-me que logo que fossem baptizadas as águas nos partiríamos todos na
primeira nau que saísse. O baptismos das águas eram certas cerimónias que se
faziam nas pias de baptizar, na vigília da Epifania, ao tempo da missa de
terça, com ladainha e muitas orações e preces apropriadas àquele ofício, como
véspera de Páscoa ao ofício das fontes. Eram em memória do baptismos de Cristo
e dali por diante todos têm liberdade para navegarem como lhes parece. Não
desisti, nem por isso, da minha determinação e finalmente, a muito custo e com
muito rogo, ele consentiu e logo mandou me fosse entregue toda a provisão e matalotagem
que para si e para os mais estava feita. Que mal chegasse a Chipre entregasse
ao nosso síndico a provisão para a Terra Santa e o fosse esperar à nau que
partiria de Veneza depois da bênção das águas... Outra, porém, era a mola que
me impelia e não descansei enquanto não senti que levantavam a âncora e
começávamos a zarpar. No cais, em Malamoch, diziam-me adeus, além de frei
Bonifácio, importantes personagens que desceram de Trento a despedir-se de mim.
Ali estava um venerado e doutíssimo padre da Ordem dos Pregadores, teólogo de
nomeada, por nome frei Luís de Sottomaior, leitor em Lovaina, chamado a Trento
a substituir o padre Pinheiro, da mesma ordem, subitamente falecido em Roma
antes do começo das sessões.
Frei
Pantaleão, abraçava-me,, trazendo-vos Nosso Senhor a Portugal..., já sei: quereis
uma relíquia de Terra Santa. Não mais que qualquer pequena de terra ou pedra da
que acheis nas ruas ou caminhos públicos, que todo esse chão até ao abismo está
santificado pelas pegadas de Cristo. Assim farei, frei Luís. Bem me custa não
embarcar convosco, mas neste momento a minha saúde não mo permite». In
Fernando Campos, A Casa do Pó, Difel, 1986, Editora Objectiva, Alfaguara, 2012,
ISBN 978-989-672-114-5.
Cortesia de Difel/Alfaguara/JDACT