Roma... Veneza... Trento
«(…) Aquele ano partiu a nau dos peregrinos
a vinte e tantos de Julho, por alguns impedimentos, entre os quais o principal
foi o facto de ter de levar também a família franciscana, que custava a reunir
por ser de diversas províncias. Mesmo assim, só partiram desta vez cinquenta e
cinco frades. Os restantes não chegaram a tempo e ficariam para uma viagem
seguinte. Eu e frei Bonifácio assistimos à partida da nau e em seguida partimos
também nós ambos caminho de Trento, onde ficámos por espaço de três meses
tratando com o comissário-geral de assuntos importantes relativos aos lugares
da Terra Santa e à nossa viagem. Seguimos por Pádua, a das pradarias irrigadas
e úberes, onde visitamos a monumental Basílica de Santo António. Pequeno diálogo
se travou aqui entre mim e frei Bonifácio, à saída do templo. Depois de nosso
padre São Francisco, que era místico e poeta, muito devoto era, dizia frei
Bonifácio, deste poverello italiano,
primeiro doutor da Igreja da nossa ordem, de portentoso saber, que tinha o dom
de aliar ao misticismo a teologia, fazendo a síntese entre a rigidez da
escolástica aquiniana e a humanidade franciscana... Dissera poverello italiano?,
perguntava eu. António de Pádua... Desculpasse a ignorância o meu bom padre frei
Bonifácio..., minha pedra no sapato, ... mas julgava ter ouvido ou lido algures
que frei António não era italiano. Não era italiano?!... À teologia e a
prodigiosa erudição que tanto tinham assombrado as terras e nações por onde
havia pregado aprendera-as ele em Santa Cruz de Coimbra... Coimbra? Não é a
terra desse vosso bispo que tanto está a dar que falar, dom frei João Soares
Fiz ouvidos de mercador à
pergunta, pois também a mim me vinham soando supostos escândalos que Sua
Reverendíssima andava dando com o elemento feminino, e continuei: O misticismo,
além de o ter de muito novo recebido de Deus, bebeu-o na orfandade prematura
junto da sé de Lisboa e na meditação inspirada diante dos corpos mutilados dos
santos mártires de Marrocos. Atónito, frei Bonifácio exclamou: Não me digais,
meu querido Pantaleão, que Santo António é um santo português!... Sim, meu
mestre, lhe disse eu sorrindo e sem acinte, Santo António de Pádua é Santo
António de Lisboa Com simplicidade franciscana, frei Bonifácio lançou-me um
braço pelo ombro: Mais um motivo, irmão, e que motivo, para vos considerar um
precioso amigo. Depois de Pádua veio Verona, bela e vetusta cidade atravessada,
em longa curva, pelo rio Ádige. Transpusemo-lo pela ponte do castelo velho,
seguimos por ruas estreitas até uma praça que havia sido um antigo fórum
romano, rodeada por belos palácios de lindas fachadas ornadas de frescos,
visitamos templos magníficos e seguimos nosso caminho pela margem do rio, entre
o viço da vegetação luxuriosa, e envolvidos de um deslumbroso panorama, com o
lago de Garda à nossa esquerda, subimos até Trento.
Era
evidente que me aturdia com as imagens externas, mas o ambiente de Trento sobrepujava
as formas exteriores do velho burgo e por toda a parte os espíritos estavam
virados para a discussão dos problemas da Igreja, que, para além de temas da
fé, tinham um alcance político universal. Porém, sendo Trento o templo do
dogma, nunca senti tanto em mim crescer a dúvida como aí, pois ao assistir a longos
e doutos debates sobre certos artigos de fé eu presenciava o triunfo de uma
tese sobre outra tese e não deixava de pensar que, noutras circunstâncias ou com
outros teólogos e doutores, talvez fosse a tese vencida a vencedora e aquilo que
se decidira ser dogma a partir daquela votação quiçá o não seria a partir desta
outra. Logo, o dogma não tinha valor absoluto, ecuménico, infalível, divino. Ao
ver todas aquelas cabeças mitradas, a maior parte delas encanecidas, senis,
vinham-me ao espírito ideias loucas que depois me atormentavam a consciência:
que Cristo nunca poderia ter usado uma mitra, uma tiara; que o aparecimento de
um Francisco de Assis era sinal da necessidade periódica que a própria Igreja
sentia de se purificar e se aproximar da divina fonte; que a reforma de que a
Igreja necessitava não era aquela que estava a ser feita, mas sim a daquele
espírito que presidiu à ideia de convidar, como de facto se convidaram, os
nossos irmãos protestantes e todos juntos tentarmos unir a grande família
cristã dividida. Bastava um pouco mais de humildade, de caridade, de parte a
parte! Mas tudo isso estava a falhar!» In Fernando Campos, A Casa do Pó, Difel,
1986, Editora Objectiva, Alfaguara, 2012, ISBN 978-989-672-114-5.
Cortesia de Difel/Alfaguara/JDACT