Saulo
A
chegada da Inquisição (maldita). 1490 - 1491
«(…) No dia seguinte, o capitão
entregou-me ao mestre remador, que se chamava Panipat. Era um gigantesco
homem-urso com braços grossos, peito e pernas musculosos, vestido apenas com
calções curtos de couro, um chicote e uma faca comprida enfiados no cós. Cada
centímetro de pele exposta estava coberto por tatuagens pretas e azuis, até, e
incluindo, a superfície da sua cabeça rapada. Amarrada em volta do pulso havia
uma corda da qual pendia a chave da corrente dos escravos. Está na hora de você
conhecer Panipat. O capitão Cosimo cutucou com a bengala as minhas costas,
empurrando-me à sua frente ao longo da estreita passarela de madeira que
percorria o centro do barco. Panipat estava sentado na vante conversando com um
tripulante que cuidava do canhão posicionado ali. Aquele era o local onde
ficava o pequeno grupo de remadores acorrentados, logo atrás da proa. Os quatro
de um lado eram árabes, provavelmente capturados e comprados pelo capitão num
mercado de escravos. Os quatro do outro lado eram homens de diferentes lugares
que haviam sido sentenciados às galés por causa da gravidade dos seus crimes.
Se fossemos atacados e o nosso canhão servisse de alvo para o fogo inimigo,
eles seriam as primeiras baixas. Havia evidências de que o chicote fora usado nas
suas costas e ombros. Estremeci quando os vi, cada um acorrentado ao seu banco,
pois sabia que, no devido tempo, aquele seria o meu destino. Interminável e
para sempre.
O capitão Cosimo anunciou a nossa
presença. Se isso lhe agrada, nobre mestre dos remadores, tenho um novo rato de
galé para você. Panipat levantou-se, assomando acima de mim. Deu um
aterrorizante sorriso que expôs dentes quebrados e a falta destes. Deixa eu dar
uma olhada no Ratinho. Firmou as mãos em volta do meu pescoço, sacudindo-me no
ar, deixando meu rosto a poucos centímetros do seu. Vai obedecer a todas as
minhas ordens! Cuspiu na minha cara. Imediatamente e sem questionar. E, se me
causar qualquer problema, esfolarei cada centímetro de pele do seu corpo.
Entendeu? O sangue latejava no meu cérebro. Não conseguia sequer murmurar uma resposta.
Responda! Ele me sacudiu com tanta força que pensei que meus ouvidos iriam
explodir, e os olhos, saltar da cabeça. O capitão bateu no seu ombro com a
bengala. O rapaz não consegue responder-lhe pois está com as mãos em volta da sua
traqueia. Panipat soltou-me, e desabei no convés a seus pés, onde grasnei,
tentando recuperar o fôlego. O capitão baixou o olhar para mim. Creio que o
Ratinho entendeu muito bem, observou, com alguma compaixão na voz. Panipat
explicou o que queria que eu fizesse.
Em cada extremidade da passarela
havia um barril de água fresca. Eu teria de reabastecê-los, todas as noites, de
um enorme tonel mantido em baixo da passarela, que era onde a nossa carga
ficava estivada também. Recebi uma funda concha de madeira com um cabo
comprido. Durante o dia, tinha de encher essa concha e subir e descer a
passarela dando água aos remadores que a pedissem; na subida, para um lado, na
descida, para o outro. A maioria dos homens livres trazia as suas próprias garrafas
de água, as quais eu também mantinha reabastecidas. Por minha vez, podia tomar
um gole a cada vez que completava a volta na popa, na extremidade do barco. De
manhã bem cedo zarpamos. O vento estava fresco, e, por isso, mais ou menos durante
a primeira hora fomos conduzidos principalmente pela vela e eu simplesmente percorri
a passarela de cima a baixo, fazendo o que me fora instruído. Os homens soltavam
comentários indecentes e esticavam os cotovelos para que eu tropeçasse, mas eu
estava acostumado a ser insultado e tinha os pés ágeis, portanto isso não me incomodou
muito. Então o sol ficou mais alto, o vento diminuiu e ficamos em águas paradas
sem qualquer abrigo à vista. Na plataforma elevada da popa, o capitão Cosimo
estava sentado debaixo de um toldo estudando seus mapas e traçando o curso. Os
homens livres e até mesmo alguns dos escravos haviam almofadado os seus bancos
com trouxas de aniagem e usavam tiras desse pano para proteger os ombros e a
cabeça dos raios do sol do meio-dia, já que a faixa de toldo acima não era
larga o bastante para cobri-los adequadamente. Percebi que precisava movimentar-me
com mais rapidez para atender suas exigências por água. Em pouco tempo estavam berrando
insultos contra mim por eu ser lento demais.
Enquanto isso, Panipat estava
montado num banquinho na popa, logo abaixo da plataforma de comando, gritando
orientações enquanto o capitão, que também agia como piloto, dava instruções
sobre a direcção que devíamos tomar. Então o mestre dos remadores levantou-se. Ei!
Ratinho!, gritou para mim. Dê um gole para cada homem ao subir e descer. Nada
mais do que isso, ou eu o esfolarei vivo! Os remadores começaram a reclamar.
Panipat então colocou-os numa braçada forte e constante, e suor escorreu das
suas testas e antebraços. Os escravos e os criminosos sem qualquer cobertura em
suas costas sofreram mais, e, a cada volta que eu dava, um homem mais velho
continuava me implorando por mais água. Eu sacudia a cabeça, mas, afinal, em
desespero, ele cravou os dentes na borda da concha de madeira e tentou engolir
tudo, derramando água pelo seu rosto e torso. Panipat deu um salto, foi batendo
o pé pela passarela e o atingiu no rosto com a ponta do cabo do seu chicote. Cão,
bradou ele. Ninguém neste barco desobedece às minhas ordens!» In Theresa Breslin, Prisioneira da
Inquisição, 2010, Editora Galera Record, 2014, ISBN 978-850-113-940-0.
Cortesia de EGaleraR/JDACT
JDACT, Theresa Breslin, Literatura, Século XV, Religião,