terça-feira, 2 de dezembro de 2014

A Ilha dos Jacintos Cortados. Cartas de amor com interpolações mágicas. Gonzalo Ballester. «Mas, mesmo assim, para quê enterneceres-te? Porquê sentir tristeza? Descobri há tempos que tornas teus os amores difíceis; mais ainda, se forem impossíveis»

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«(…) Isto já foi há alguns dias. Há quantos estamos aqui? Lembrei-me de escrever este caderno precisamente uma semana depois da chegada, isto é, no domingo, mas não comecei a fazê-lo senão na tarde de segunda-feira, quando voltámos da universidade e te encerraste para preparar uns temas urgentes. Na tarde seguinte não fiz nada: foi a de terça-feira e passei-a percorrendo a ilha, espécie de Robinson maravilhado com as cores do bosque, com os esquilos que não fugiam à minha passagem, e com um casal de faisões que quase pude acariciar: sentei-me numa espécie de praceta que hei-de mostrar-te, e pus-me a cantar como um rapaz novo ou como Tom O’Connor quando bebe cerveja e deixa que a nostalgia se lhe solte; só que Tom conta, quando não canta, e eu não tinha a quem contar. Sabias que ao chegar ao intrincado, certo lugar do bosque onde só o bosque se vê e se ouve, nada humano em volta, o céu no alto e o entardecer em cima, tive medo de algo, não te sei dizer de quê? Dos homens não era, é óbvio. Veio-me de repente o desejo de fugir, e fi-lo desajeitadamente, em volta daquele ponto, quase sem me afastar, e as trevas a chegarem: até que encontrei a vereda, e a cabana solitária, mas já familiar, acolheu-me como um seio. Não to disse; há outras coisas que te oculto. Hão-de sair, se nos disserem respeito. Ontem, quarta-feira, já era meia-noite quando chegámos ao cais; olhaste para o relógio do automóvel e fizeste um comentário acerca do jantar a que tínhamos ido juntos: o que era oferecido pelo Departamento de Línguas Românicas a esse professor francês que sabe tudo acerca de Rabelais e que é acompanhado por uma rapariga ruiva, de corpo muito espigado e modos tranquilos; parecem apaixonados, ou pareceu-te a ti, porque eu, na verdade, não tinha reparado nem nos seus olhares nem nas suas gentilezas. Mas tu disseste-me, quando ela correu a socorrê-lo porque se tinha engasgado e tossia como se fosse sufocar: Aquela rapariga gosta dele, e, momentos depois, ao ver a delicadeza com que ele correspondia ao socorro: Aqueles amam-se.
Eu disse-te ao ouvido que achava a conjectura de certa forma audaz e de escasso fundamento, e julgo recordar que acrescentei algo relativamente a essa tua mania que te leva a ver, onde não os há, amores precários: sê-lo-iam, no caso de existirem, os do especialista em Rabelais e da rapariga ruiva, muito mais nova do que ele. Mas, mesmo assim, para quê enterneceres-te? Porquê sentir tristeza? Descobri há tempos que tornas teus os amores difíceis; mais ainda, se forem impossíveis. Tinha-se levantado o chairman com a taça na mão, e começava o discurso. Deu-me tempo para pensar na história de Agnesse, vagamente sabida, mas não nos episódios amorosos, mal conhecidos então. Foi Claire quem ma descobriu, personagem curiosa e incrível, apesar de se lhenotar (a Claire) que de quem queria falar era de ti; referiu-se a vocês pouco tempo depois daquela noite em que ouviste em minha casa O Lamento de Ariadne e em que de forma tão poética se iniciou a nossa amizade; não foi um conto repentino, mas sim muito preparado e abundante em precauções, e depois de uns preâmbulos com referência a umas certas árvores que crescem uma no tronco da outra, ou que se lhe instala num dos lados: o que levou o colóquio ao tema dos bosques, e contei-lhe como uma noite, que agora já me parece tão antiga como o meu coração, descendo pela ladeira duma montanha alemã, tive a sensação, ou talvez o sentimento, de penetrar num âmbito sagrado, que o sagrado caía sobre mim, como o relento, das folhas das tílias e me deixava envolvido, possuído, um pouco assustado; mais ou menos o mesmo que acabo de te contar acerca do centro da ilha e do medo que tive perante o mysterium tremendum agora já identificável. Mas o bosque alemão de que te falo, mais uma floresta, não era dos sonoros, mas sim dos silentes, e notava-se logo que detrás ficava um buraco, talvez o vazio, até distâncias inconcebíveis e escuras. Claire disse-me que nunca tinha chegado a tanto, talvez por causa da sua tendência infantil para a incredulidade, mas sim a manter com o bosque no seu conjunto e como entidade unitária, dado que assim o havia imaginado sempre, relações pessoais baseadas sobretudo na conversação, e que aquele que rodeava a sua aldeia, povoado de coníferas e de abundantes espíritos subtis, que além disso se detinha à beira do riacho, saltava-o, e continuava depois, era loquaz até, à irritação e à suspeita, e os seus relatórios acerca do baile das fadas e do lugar onde os gnomos fabricam os seus garfos de ouro recebia-os Claire como desprezíveis, embora nunca tenha encontrado tesouros nem visto fadas bailarinas, mas isto obedece seguramente a alguma limitação pessoal, falta de sonho ou excesso de proteínas, concluiu; mas o que me interessava a mim era o caso de Agnesse e a forma de viver da faia no tronco do carvalho, Agnesse em Ariadne, arrisquei um certo tipo de troça, eficaz embora no fundo inofensiva, acerca das faculdades linguísticas do bosque, o que não agradou de todo a Claire, que bem sabes como goza deixando que a fantasia o eleve até lugares donde mais tarde o regresso se torna difícil: pois de um pulo saltou do bosque para o cadeirão do gabinete em que estávamos a falar, que era o meu (e é claro que tocava no gira-discos a Sonata a Kreutzer que ele me tinha solicitado), e disse-me: … olhe, vai ser difícil você acreditar nisso de Agnesse, a sua condição de meridional materialista impede-lho; mas eu, sim: acredito a pés juntos; sabia que consiste em que certa pessoa cresça dentro de outra? Como Napoleão dentro de si?, respondi-lhe com ar de sorna; e ele, a princípio, mandou-me ir dar uma volta, e ficou um grande bocado em silêncio, ouvindo Oistrack; mas, depois, reconheceu que o caso tinha bastante de incrível, pelo menos nos termos em que ele o tinha enunciado; que, é claro, o uso do verbo crescer não era apropriado, dado que, mais do que um crescimento, se tratava de uma acumulação, talvez de uma instalação, o que resultava, afinal, no mesmo, isto é, numa entidade vivente a quem seria bom, de qualquer forma, aplicar as últimas descobertas e as últimas afirmações acerca da sua essência e consistência extraídas da psicologia condutista e das modernas teorias da personalidade». In Gonzalo Torrente Ballester, L Isla de los Jacintos Cortados, Ediciones Destino, 1980, A Ilha dos Jacintos Cortados, Cartas de amor com interpolações mágicas, Relógio d’Água, 1994, ISBN-972-708-232-7.

Cortesia de Relógio d’Água/JDACT