«(…) Todos os dias, antes da banhoca, o rei passeava os cães. Fazia-o
de manhã, preferencialmente, visitando em sua companhia obras, as muitas em
curso no reino. A tarde, punha-se de molho e de molho despachava decretos e
outros assuntos necessários e insultava este ou aquele para seu agrado intenso.
À noute, besuntava-se e sonhava com donzelas ignorantes de quaisquer pudores,
mas muito sábias de artes maiores de outra avidez… É certo que o unguento não o
curava. Aliviava-o um pouco em corpo e muito, mesmo muito em espírito. A pestilência
já não fedia tanto, e os banhos de água ajudavam. Até as moscas se apartavam
mais dele. Dava graças pela nova rotina... Enquanto D. Bosta, animadíssimo pelo
cheiro do unguento, lhe uivava à porta, razão imediata para Gil, o camareiro,
se trancar a sete chaves em outra ala do palácio, o rei dormia e sonhava e
sonhando gozava fartamente.
As voltas pantomineiras que dá este mundo! Isto pensava Maria Pandorga,
p… velha e pançuda como um barril, quando a vieram buscar explicando-lhe ao que
vinham. Maria Pandorga há muito que não se ajeitava em leitos mas tinha passado
suas artes de prazer para as mais requintadas de maldizer e comentar, de
preferência com um bom bagaço novo para empurrar a quadrilhice. Nunca língua
alguma se soubera tão ágil, sábia das coisas comezinhas desta vida e até das
mais intrincadas, língua acertada por corpo muito bem vivido e em muito boas
companhias de espírito loquaz como o de um teólogo ou, mais subtil ainda, de um
embaixador real perito em grandes intrigas e manhas... Da fama de mulher mais
bela do reino passara à de mais sabedora e acertada e os que outrora a
procuravam para deleites de excitação, de cónegos a príncipes, voltavam, mais
cedo ou mais tarde, agora para ouvir os seus conselhos profundos. Talvez por
isso, a sua casa era a mais rica das pobres casas do bairro onde vivia.
Foram buscá-la, cumprindo ordens do rei, ao bairro mais velho da sombra
do castelo, onde as ruas fediam e as casas se arruinavam desinteressadas, lugar
onde, aliás, moravam muitas p… velhas e também arruinadas, algumas das quais
eram agora parteiras, ou aconselhavam matrimónios fracos e comprometidos a
troco de moedas muito pequenas ou mesmo de nacos de comer... Fora ela, Maria
Pandorga, quem iniciara El-Rei e seu primo Afonso, eram os dois imberbes como
castanhas prontas a assar e desconhecedores totais de quaisquer descaminhos da
carne ou do que dela se projecta em reentrâncias, esconderijos, fluidos e
palpitações gemidas. Era ela, então, já um pouco entrada nos anos, mas tão
sabedora do seu oficio que El-Rei nunca se esqueceu da girândola desse sucesso,
aliás, metade dos homens da Corte nunca esqueceram as peripécias com Pandorga. Mais
recentemente, chegou ao conhecimento de El-Rei que sapiências e acerto ocupavam
agora Maria Pandorga a outro nível diferente do da carne. Mandou-a chamar.
Cumprindo na íntegra as ordens de El-Rei, os guardas que foram por ela,
e apesar dos protestos da mulher, deram-lhe tremendo banho numa selha, banho de
despiolhar e desencascar, desencastoando-lhe a porcaria acumulada nos anos mais
recentes. Deixaram-na um pouco assada, mas asseada. Vestiram-na depois com um
vestido, requintado mas velho, que havia sido de aia. Em Pandorga parecia de
rainha. Ajeitaram-lhe os cabelos com alguma, pouca, graça fêmea, esfregaram-na
com carmim e aspergiram-na de aromas. Enfiaram-na depois numa carruagem e, meio
escondida, introduziram-na no palácio e na antecâmara real». In
Alexandre Honrado, Os Venturosos, Círculo de Leitores, Braga, 2000, ISBN
972-42-2392-2.
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