Paris, 4 de Junho de 1940
«(…) Mais calma, deu por si com fome, a tarde já ia a meio e nada
comera desde manhã. Tinha uns francos no porta-moedas e olhou em volta, para se
situar. Lembrava-se vagamente de que passara uma das pontes do Sena, antes de
se sentar mais uma vez, supinamente chateada. Estava nos jardins da Nôtre-Dame
e viu,
do lado de lá do rio, na direcção do Saint-Germain, um bistrô numa esquina, para
onde se dirigiu. Encostou a bicicleta à parede do Chez Pierre, onde nunca
entrara, apesar de se recordar de que, um dia, Sara comentara que ali se
serviam uns bons ovos mexidos. Pediu-os, juntamente com uma torrada e um café
com leite, mal se sentou a uma das mesas e o proprietário a veio atender,
contrariado e arrastando os pés. Ao balcão viu apenas três clientes, debruçados
sobre um rádio, um Telefunken,
ironicamente alemão. Pelo vestuário, deviam ser funcionários públicos, pois usavam
mangas de alpaca e pareciam ansiosos, embora por vezes lançassem comentários
jocosos, como se o locutor da rádio não os convencesse. Enquanto comia, a minha
prima escutou a voz rouca e poderosa que provinha do aparelho, que lhe soou
vagamente conhecida e cujas frases em inglês eram ditas com firmeza e convicção.
Fosse quem fosse, tinha jeito à frente do microfone e foi esse talento que a
obrigou a tomar atenção às palavras.
...Tenho plena confiança de que, se todos cumprirem os seus deveres, se
nada for negligenciado e se as melhores providências forem tomadas, como está sendo
feito, deveremos provar ser capazes mais uma vez de defender a nossa ilha
natal, de superar a tempestade da guerra e de sobreviver à ameaça de tirania,
se necessário por anos, se necessário, sozinhos. Um
dos funcionários públicos soltou uma gargalhada, macerada de desprezo, apelidando
quem falava de velho bêbado. Foi nesse momento que Carol identificou finalmente
a voz de Winston Churchill, o recém-nomeado primeiro-ministro da Inglaterra,
enquanto este fazia uma referência à República Francesa, gerando alguma indignação
nos ouvintes, que logo negaram aos ingleses o estatuto de fiéis aliados. Balelas!,
protestou um dos mangas de alpaca. A Maginot é que nos vai salvar, não é este
careca gordo! Carol ignorou-os, como que atraída por um íman sonoro. Churchill
usava impressionantes adjectivos e falava agora em grandes extensões da Europa e antigos e famosos Estados, caídos nos punhos da Gestapo e do odioso aparato do domínio nazi.
De repente, um conjunto de frases
épicas emergiu do Telefunken e,
como que por magia, o garfo da minha prima ficou suspenso no ar.
Iremos
até ao fim. Lutaremos na França. Lutaremos nos mares e oceanos, lutaremos com
confiança crescente e força crescente no ar, defenderemos a nossa ilha,
qualquer que seja o custo.
Lutaremos nas praias, lutaremos nos terrenos
de desembarque, lutaremos nos campos e nas ruas, lutaremos nas colinas; nunca
nos renderemos! Finalmente, havia alguém que prometia uma resistência
férrea contra os nazis. A coragem mostra-se, na esperança de que se
multiplique, e a de Churchill emitia um brilho tão eficaz que teria certamente a
capacidade de parar a fuga dos parisienses, de lhes tirar o medo e de os
convencer a lutarem pelo que era seu, por uma Paris que a minha prima adorava. Eu
vou ficar, prometeu a si própria. Não vou deixar a cidade e vou lutar, tal como
Churchill disse. Eu não me rendo! Decidida, procurou o olhar dos franceses, mas
estes, apesar de temporariamente emudecidos pela vibrante peroração do
primeiro-ministro inglês, estavam já para além da salvação. Como se aquele notável
discurso tivesse exposto ainda mais as suas fraquezas, os três ouvintes
abandonaram o bistrô cabisbaixos
e envergonhados. E, para enorme espanto de Carol, enquanto dois seguiram pela
rua para a direita, um dos manga de alpaca dirigiu-se à Hirondelle e preparou-se
para a montar. Com um pulo, a minha prima levantou-se, ouvindo nas suas costas
um grito do proprietário, convencido de que ela ia escapar sem pagar, enquanto
saía para a rua, insultando o homem com palavrões! Tal como de manhã o rapaz, o
funcionário público largou a Hirondelle
e seguiu caminho sem se desculpar. Ainda com o sangue a latejar nas têmporas,
Carol levantou a bicicleta do chão e estacou, siderada, vigiada pelo dono do estabelecimento.
Mais calma, encostou de novo a Hirondelle
à parede e reentrou no bistrô,
seguida de perto pelo homem, cujo comentário seguinte não se destinou à
tentativa de furto, mas ao discurso de Churchill. É fácil falar do lado de lá
da Mancha, resmungou ele, antes de exigir que Carol pagasse, pois tinha de
fechar portas. Desiludida, a minha prima retirou uma conclusão óbvia: Paris não
queria saber de lutas.
Paris, 4 de Junho de 1940
No Boulevard Saint-Germain, pelas
seis da tarde, alguns carros eram ainda carregados com malas, mas o frenesim
matinal desaparecera. A cidade voltava à normalidade, deduziu Carol, pedalando
lentamente, enquanto era ultrapassada por um grande automóvel preto que, cem
metros à frente, virou à esquerda. Um Mercedes...
Não que fosse raro, mesmo os franceses compravam carros alemães, porém
pareceu-lhe um mau presságio. Virou também e via já os contornos do Convento de
Saint-Sulpice quando reparou que o veículo estacionara à porta de casa da sua
amiga Sara». In Domingos Amaral, A Bicicleta que Fugiu dos Alemães, Casa das Letras,
2019, ISBN 978-989-780-124-2.
Cortesia CdasLetras/JDACT
JDACT, Domingos Amaral, Literatura, Paris,