quinta-feira, 3 de junho de 2021

Domingos Amaral. Por Amor a uma Mulher. «A recente morte de dona Urraca provocara, no entanto, uma alteração política capaz de modificar os equilíbrios anteriores. Aquele reencontro de Páscoa…»

 


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Viseu, Sexta-Feira Santa, Abril de 1126

«(…) As outras olharam para ela, espantadas, mas Zaida limitou-se a encolher os ombros, como se lhe fosse indiferente a opinião sobre os atributos estéticos da rapariga galega, e apenas tivesse falado para evitar uma imprecisão teológica. Enervada com a alfinetada da irmã, Fátima defendeu-se: os anjos cristãos têm sempre caras lindas, em qualquer igreja! E a galega também, foi isso que quis dizer! Encolhendo os ombros, Raimunda acabou por conceder: sim, é bonita. Como quem conhece um segredo pecaminoso, Fátima declarou: de anjo só tem a cara! Diz-se que adora ajoelhar à frente dos amigos e beijá-los onde eles se tornam duros. Ouviu-se de imediato a voz imperativa de Zulmira: Fátima!

A filha encolheu os ombros à repreensão da mãe e continuou: se fosse ao príncipe, fugia dessa Chamoa a sete pés! As juras de amor da galega mudam de cada vez que nasce o Sol! É um hoje, outro amanhã, outro no domingo, vai tudo a eito! Inflamadas por estas argumentações, a minha prima e as três mouras nem repararam que eu, meus irmãos e Afonso Henriques nos tínhamos aproximado. Ao vê-las, o príncipe saudou-as e perguntou: a rapariga que por aqui passou há pouco era a Chamoa? A minha prima Raimunda viria um dia a contar-me que naquele momento o seu coração quase explodia, estilhaçado de dor. Ele viu a jumenta e vai galá-la na missa!, era o que ela pensava... Pobre Raimunda, como se ela tivesse poder para impedir o amor de acontecer. É sempre assim: quando amamos alguém, esse sentimento é tão forte que nos cega, dando-nos uma ilusão de que seremos sempre amados de volta. Como se não existissem outras pessoas para amar no mundo, ou como se não houvesse loucos, incapazes ou solitários que não sabem, ou não podem, amar.

Viseu, Sexta-Feira Santa, Abril de 1126

Lembro-me de que Teotónio, o prior de Viseu que todos consideravam um santo, sentara-se naquela tarde atrás do altar e observava a representação dos populares à sua frente. No espaço que o separava dos primeiros bancos onde estavam os fiéis, um dos improvisados actores, barbudo e seminu, apenas com um trapo encardido enrolado à volta do baixo-ventre, apresentava-se coberto de sangue na testa, debaixo da coroa de espinhos que lhe rodeava a cabeluda cabeça. Era sangue de galinha, untaram-no para parecer Jesus, disse-me depois o prior. Com aquelas barbas tão sujas e tanta lama até estava idêntico a um Cristo, mas na verdade Teotónio sentia-se desiludido com o lavrador, parecia faltar-lhe gravidade para um papel tão importante. Pegava na cruz como quem leva distraidamente uma saca vazia e estava sempre a olhar para os secundários, vestidos de soldados romanos, esquecendo as suas obrigações. Por uma vez, quando vinha a caminho do altar, o prior até o vira a sorrir ao centurião! Que descarado! O Jesus do ano passado tinha mais jeito!, comentou ele connosco, depois da missa.

Já incomodado com aquela fraca prestação, o prior ainda mais se desiludiu quando, ao vê-lo ser pregado na cruz, numa trave improvisada, com falsos pregos martelados por falsos soldados, reparou que dona Teresa nem sequer olhava para o teatro da paixão, embevecida como estava com o Trava. Que afronta, passar a Páscoa na minha igreja ao lado do amante!, comentaria ele depois. Era uma desonra para o Condado ter como condessa uma mulher que se deitava com um homem casado, e ainda por cima galego! Quando os vira entrar na igreja, de braço dado e sorridentes, Teotónio ainda pensara em corrê-los dali aos gritos, mas o Jesus já entrara pela porta principal e os olhos dos presentes tinham-se virado para lá. Passara o momento de lhes pregar um sermão castigador. Na missa, era tempo de silêncio, mas como a igreja estava cheia ouvia-se o rumor das conversas e das risadas. Do lado direito da nave central, encontrava-se a família Trava. Na primeira fila, Fernão Peres, ao lado de dona Teresa, e Bermudo, junto à sua esposa, Urraca Henriques. Atrás, no segundo banco, sentava-se Elvira Trava, o seu marido, Gomes Nunes Pombeiro, e ainda as duas belas filhas de ambos, Maria e Chamoa Gomes.

No terceiro banco, encontrava-se Sancha Henriques, a segunda filha de dona Teresa, uma problemática criatura. O Braganção, como todos chamavam a Fernão Mendes, senhor de Bragança, apesar de alto, espadaúdo e forte, já levara dois gritos há pouco, tendo sido obrigado a afastar-se dela. Entre esses dois litigantes estava agora sentada Teresa Celanova, bonita e ainda jovem, talvez com vinte e dois anos, e que necessitava claramente de casar, pela forma como lhe ardiam as faces. Corria o rumor de que Afonso Raimundes se afeiçoara por ela, mas agora que dona Urraca morrera e o filho se passaria a chamar Afonso VII, deixando cair o Raimundes, havia quem dissesse que às ousadas esperanças da Celanova iria acontecer o mesmo que ao sobrenome do novo monarca. Do lado esquerdo da nave central, estavam sentados os nobres portucalenses de Entre Douro e Minho, e a separação forçada entre eles e os Trava era tudo menos simbólica. Há anos que existiam fundas querelas entre eles e a poderosa família galega. Liderados pelo ardiloso Fernão, os Trava haviam primeiro afastado dos cargos públicos do reino os senhores da Maia, de Baião, de Ribadouro. Depois, numa segunda vaga, haviam secundarizado também as famílias menos distintas, os Silva, os de Lanhoso, os Guedões ou os de Marnel.

A recente morte de dona Urraca provocara, no entanto, uma alteração política capaz de modificar os equilíbrios anteriores. Aquele reencontro de Páscoa, que dona Teresa impusera a todos, trazia água no bico. Os seus planos para casamentos também eram já conhecidos, e uma estranha excitação percorria a igreja de Viseu. Paio Soares, o vaidoso, estava fisgado em Chamoa, mas também Afonso Henriques, formoso e altivo na sua dalmática vermelha, parecia esgazeado com a formosura da bela galega! Enervado, o prior olhou para o improvisado Cristo, já pregado na cruz e a quem um soldado estendia a tradicional esponja com fel. Estava na hora de o filho do homem falecer, pois só assim cairia um silêncio sepulcral na igreja. O prior gesticulou ao centurião, ordenando que se despachassem. O Cristo tinha de olhar para o alto da igreja e dizer, meu pai, porque me abandonaste?, e depois todos ajoelhariam e ficariam algum tempo calados, a olhar para o chão, em silenciosa homenagem à morte de Jesus, e sobretudo impedidos de trocarem olhares luxuriosos». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Por Amor a uma Mulher, Casa das Letras, LeYa, 2015, ISBN 978-989-741-262-2.

Cortesia de CdasLetras/LeYa/JDACT

JDACT, Domingos Amaral, A Arte, Literatura,