A bordo do Équateur, Novembro de 1864
«(…) Na primeira noite, jantámos
com o comandante. Ele nos falou sobre as mudanças no império. Armazéns cheios
até à boca de ouro verde. O café plantado e colhido por negros. Será muito
diferente da servidão que tivemos na Rússia? Nosso czar Alexandre II acabou de
libertá-los. Banidos de suas terras, antigos servos encherão as ruas de
Petersburgo e Moscovo. A diferença é que aqui haverá riqueza, maman, riqueza que
virá com o café. Mais, terras. Terras como tínhamos na Rússia. Servos substituídos
por escravos africanos. Deixamos de lado o continente despovoado graças aos
rigores do clima, as costas estéreis de mar frio e vazio, a tristeza do solo,
tudo o que congela o coração, para trocar pelo sol e pelas promessas do eterno
verão. Há fortuna a fazer. O rio Paraíba, grande como o nosso Neva, irriga as
terras da família de Luís César. Dizem que é a principal artéria a bombear
sangue para o coração do império.
Nossa travessia já dura três
semanas, pouco mais. Os arquitectos do vapor se esforçaram para reconstituir a
atmosfera de uma casa burguesa ou de um club
inglês.
As salas de jantar e o salão se confundem. Os passageiros jantam numa mesa
comprida com cadeiras fixas que mais parece uma mesa de banquete. Num canto, o
piano alegra o cair da tarde. Fora daí, homens e mulheres separados. Para elas,
uma saleta com confortáveis sofás abriga conversas, jogos e trabalhos manuais.
Para nós, a intimidade do fumoir protegido por janelas escuras,
onde degustamos vinho do Porto e charutos.
Passo a maior parte do tempo na
estreita cabine, fazendo planos para o futuro. A higiene é rudimentar e o ar
confinado. O regulamento é rigoroso e o medo de incêndios impõe a prudência. Às
onze da noite é preciso apagar as lâmpadas de gás, suspendidas do tecto. É
proibido fumar fora da área determinada. Moralidade e segurança andam juntas: são
proibidos os jogos de azar e o acesso de senhoras que não tenham reputação
ilibada à primeira classe. Quando posso, saio para respirar ar livre. As distracções
são pobres: whist, damas, dominó,
desenho ou leitura. Os sul-americanos se tornam barulhentos, sobretudo quando
jogam o tric-trac. Brigam a ponto
de parecer estar iminente uma luta corporal.
No deque, estendidos em espreguiçadeiras,
os passageiros conversam. Não todos com todos. Basta encostar a cadeira de
determinada forma para afastar os inoportunos. Frequentáveis? Só um inglês que,
tendo ouvido falar em diamantes, vai ao Brasil para explorar pedras preciosas e
um francês, correspondente da Revue des Races Latines, ambos apavorados
com os surtos de febre amarela na capital. No porão seguem uns pobres colonos
alemães, a quem prometeram um mundo de riquezas. Na primeira classe, criados em
uniforme branco garantem nosso conforto. Aproveito para repetir algumas
palavras em português: bom dia, obrigado, por favor.
Impressionei Luís César ao
ostentar restrição em relação aos demais viajantes. Com antecedência, reservei
nossos lugares. E em vez de nos misturarmos à maciça mesa em que jantamos com o
comandante, preferi que fizéssemos nossas refeições numa outra, pequena, de três
lugares. Isolamento, sim. Afinal, o Équateur
é
um teatro. Aqui nos identificamos, nos reconhecemos e somos parte de uma
restrita sociedade cosmopolita que desconhece fronteiras. Da Rússia para a França.
E agora para os trópicos. E tenho um título que preciso fazer valer, maman.
O comandante não deixou dúvidas
sobre a pobreza da Corte do império brasileiro. Sentirei falta da vida
parisiense? Certamente. É sabido que até o bom Deus, quando se entedia nos céus,
abre as janelas e olha os boulevards! Festas e
prazeres em que as pessoas divertem os outros, se divertindo. Tudo brilha, tudo
ferve, tudo se evapora e se esfuma. O entretenimento passou da Corte de Napoleão
III para o Tout-Paris, que substituiu
a aristocracia. E é aí que nos encaixamos, não? Sabemos como poucos que a estação
hípica abre com as grandes corridas e se encerra, ao final da Primavera, com o Grand Prix. Que o Outono é
tempo de caça no campo. Que só se pode ser visto no Bois de Boulogne até as
treze horas. Que patinar até as dezasseis horas é para as famílias respeitáveis.
Depois, tudo desanda com a chegada das demi-mondaines. Às sextas, dia de ir ao hipódromo
e dia elegante para tomar um aperitivo e jantar nos boulevards, mas, nunca
antes das vinte horas. Segundas e sextas, ópera. Sábados, Nouveau Cirque. À
meia-noite, uma ceia no mercado dos Halles e, último toque, um copo de leite no
Pré Catelan antes de se recolher. Já fui informado: aqui se deitam com as
galinhas e acordam com elas». In Mary del Priore, Beije-me onde o Sol não
Alcança, 2015, Editora Planeta, 2015, ISBN 978-854-220-588-6.
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JDACT, Mary del Priore, Literatura, Narrativa,