«(…) Desligou o motor, tirou a chave e abriu a porta. Não foi capaz de sair. Julgou que a aba da gabardina se prendera, que a perna ficara entalada na coluna do volante, e fez outro movimento. Ainda procurou o cinto de segurança, a ver se o colocara sem dar por isso. Não. O cinto estava pendurado ao lado, tripa negra e mole. Disparate, pensou. Devo estar doente. Se não consigo sair, é porque estou doente. Podia mexer livremente os braços e as pernas, flectir ligeiramente o tronco consoante as manobras, olhar para trás, debruçar-se um pouco para a direita, para o cacifo das luvas, mas as costas aderiam ao encosto do banco. Não rigidamente, mas como um membro adere ao corpo. Acendeu um cigarro, e de repente preocupou-se com o que diria o patrão se assomasse a uma janela e o visse ali instalado, dentro do carro, a fumar, sem nenhuma pressa de sair. Um toque violento de claxon fê-lo fechar a porta, que abrira para a rua. Quando o outro carro passou, deixou descair lentamente a porta outra vez, atirou o cigarro fora e, segurando-se ao volante, fez um movimento brusco, violento. Inútil, Nem sequer sentiu dores. O encosto do banco segurou-o docemente e manteve-o preso. Que era isto que estava a acontecer? Puxou para baixo o retrovisor e olhou-se.
Nenhuma diferença no rosto.
Apenas uma aflição imprecisa que mal se dominava. Ao voltar a cara para a
direita, para o passeio, viu uma rapariguinha a espreitá-lo, ao mesmo tempo
intrigada e divertida. Logo a seguir surgiu uma mulher com um casaco de abafo
nas mãos, que a rapariga vestiu, sem deixar de olhar. E as duas afastaram-se,
enquanto a mulher compunha a gola e os cabelos da menina. Voltou a olhar o
espelho e compreendeu o que devia fazer. Mas não ali. Havia pessoas a olhar,
gente que o conhecia. Manobrou para desencostar, rapidamente, deitando a mão à
porta para fechá-la, e desceu a rua o mais depressa que podia. Tinha um fito,
um objectivo muito definido que já o tranquilizava, e tanto que se deixou ir
com um sorriso que aos poucos lhe abrandara a aflição Só reparou na bomba de
gasolina quando lhe ia quase a passar pela frente. Tinha um letreiro que dizia esgotado,
e o carro seguiu, sem o mínimo desvio, sem diminuir a velocidade. Não quis
pensar no carro. Sorriu mais. Estava a sair da cidade, eram já os subúrbios,
estava perto o sítio que procurava. Meteu por uma rua em construção, virou à
esquerda e à direita, até uma azinhaga deserta, entre valados. Começava a
chover quando parou o automóvel.
A sua ideia era simples.
Consistia em sair de dentro da gabardina, torcendo os braços e o corpo,
deslizando para fora dela, tal como faz a cobra quando abandona a pele. No meio
de gente não se atreveria, mas, ali, sozinho, com um deserto em redor, só longe
a cidade que se escondia por trás da chuva, nada mais fácil. Enganara-se, porém.
A gabardina aderia ao encosto do banco, do mesmo modo que ao casaco, à camisola
de lã, à camisa, à camisola interior, à pele, aos músculos, aos ossos. Foi isto
que pensou não pensando quando daí a dez minutos se retorcia dentro do carro
aos gritos, a chorar. Desesperado. Estava preso no carro. Por mais que se
torcesse para fora, para a abertura da porta por onde a chuva entrava empurrada
por rajadas súbitas e frias, por mais que fincasse os pés na saliência alta da
caixa de velocidades, não conseguia arrancar-se do assento. Com as duas mãos
segurou-se no tejadilho e tentou içar-se. Era como se quisesse levantar o
mundo. Atirou-se para cima do volante, a gemer, apavorado. Diante dos seus
olhos, os limpa-vidros, que sem querer pusera em movimento no meio da agitação,
oscilavam com um ruído seco, de metrónomo. De longe veio o apito duma fábrica.
E logo a seguir, na curva do caminho, apareceu um homem pedalando numa
bicicleta, coberto com uma grande folha de plástico preto, por onde a chuva
escorria como sobre a pele de uma foca. O homem que pedalava olhou curiosamente
para dentro do carro e seguiu, talvez decepcionado ou intrigado por ver um homem
sozinho, e não o casal que de longe lhe parecera.
O que estava a passar-se era
absurdo. Nunca ninguém ficara preso desta maneira no seu próprio carro, pelo
seu próprio carro. Tinha de haver um processo qualquer de sair dali. À força não
podia ser. Talvez numa garagem? Não. Como iria explicar? Chamar a polícia? E
depois? Juntar-se-ia gente, tudo a olhar, enquanto a autoridade evidentemente o
puxaria por um braço e pediria ajuda aos presentes, e seria inútil, porque o
encosto do banco docemente o prenderia a si. E viriam os jornalistas, os fotógrafos
e ele seria mostrado metido no seu carro em todos os jornais do dia seguinte,
cheio de vergonha como um animal tosquiado, à chuva. Tinha de arranjar outra
maneira». In José Saramago, Objecto Quase, 1978, Porto Editora, 2015, ISBN
978-972-004-655-0.
Cortesia de PortoE/JDACT
JDACT, José Saramago, Literatura, Política, Cultura, Nobel, MLCT,