quarta-feira, 30 de junho de 2021

O Advogado do Diabo. Morris West. «O dedo insensível do cirurgião deteve-se um instante no centro da mancha cinzenta e, em seguida, moveu-se para fora, traçando a difusão do tumor…»

jdact

«Sua profissão era preparar os outros para a morte; chocava-o, no entanto, o facto de estar tão pouco preparado para a sua própria. Era um homem sensato, e a razão dizia-lhe que a sentença de morte de um homem já está escrita na palma da sua mão no dia do seu nascimento; era um homem frio, que a paixão pouco inquietava e que, de modo algum, se molestava com a disciplina. Não obstante, seu primeiro impulso fora o de agarrar-se cegamente à ilusão da imortalidade. Fazia parte da decência da morte surgir sem se fazer anunciar, o rosto coberto e as mãos ocultas, num momento em que era menos esperada. Vinha lenta e suavemente, como seu irmão, o sono, ou, então, rápida e violentamente, como a consumação do acto do amor, de modo que o momento da rendição fosse uma quietude e uma saciedade, em vez da dilacerante separação do espírito e da carne. A decência da morte. Era a coisa que os homens esperavam, vagamente, a coisa pela qual rezavam, se estavam dispostos a rezar, ou que lamentavam amargamente, ao saber que isso lhes era negado. Blaise Meredith lamentava-o agora, sentado sob o ténue sol de Primavera, a observar os cisnes lentos, processionais, sobre o Serpentine, os casais em idílio sobre a relva, os poodles, ajoujados em suas trelas, a caminhar entediados pelas alamedas, junto às saias esvoaçantes de suas donas. Em meio a toda aquela vida, a relva a germinar, as árvores estuantes de seiva nova, os açafrões e os narcisos a inclinar-se nos ramos, o lânguido namoro dos jovens, o vigor dos passeantes mais velhos, somente ele, parecia, tinha sido assinalado para morrer. Não havia dúvida quanto a urgência ou à finalidade do mandato. Fora escrito, para que todos o lessem, não há palma de sua mão, mas no rectângulo de uma chapa fotográfica, onde uma pequena mancha cinzenta enunciava a sentença a que ele estava condenado. Carcinoma. O dedo insensível do cirurgião deteve-se um instante no centro da mancha cinzenta e, em seguida, moveu-se para fora, traçando a difusão do tumor: de desenvolvimento lento, mas bem nítido. Vi demasiados deles, para que me engane com este. Enquanto observava a pequena tela translúcida e o dedo espatulado que se movia sobre ela, Blaise Meredith foi assaltado pela ironia da situação. Passara toda a sua vida a fazer com que os outros se defrontassem com a verdade acerca de si próprios, as culpas que os atormentavam, as concupiscências que os degradavam, as loucuras que os diminuíam. Agora, olhava suas próprias entranhas, onde um pequeno tumor maligno se desenvolvia como uma raiz de mandrágora, estendendo-se na direcção do dia em que o destruiria. Perguntou, bastante calmo: é operável? O cirurgião apagou a luz atrás do quadro de exames e a pequena morte cinzenta se extinguiu, opaca; depois sentou-se, ajustando a lâmpada de mesa, de modo a que o seu próprio rosto ficasse na sombra e o de seu paciente, iluminado, como uma cabeça de mármore num museu. Blaise Meredith notou o pequeno ardil e compreendeu. Eram ambos profissionais. Cada qual, na sua própria profissão, lidava com animais humanos. Cada qual devia conservar um certo desprendimento clínico, para que não se desgastasse muito e não ficasse tão fraco e medroso como os seus pacientes. O cirurgião recostou-se na sua cadeira, apanhou um corta-papel e segurou-o no ar tão delicadamente como se fosse um bisturi. Esperou um momento, reunindo as palavras, escolhendo esta, descartando aquela, e juntando-as, depois, numa forma verbal meticulosamente exacta. Posso operar, sem dúvida. Se eu o fizer, o senhor estará morto dentro de três meses. E se não o fizer? Viverá um pouco mais e morrerá de maneira um pouco mais dolorosa. E quanto tempo mais terei de vida? Seis meses. Talvez um ano, no máximo. É uma escolha sombria. Que o senhor mesmo terá de fazer. Compreendo perfeitamente. O cirurgião sentou-se mais à vontade na sua cadeira. O pior já tinha passado. Não se enganara com respeito àquele homem. Era inteligente, ascéptico, senhor de si mesmo. Sobreviveria ao choque e procuraria conformar-se diante do inevitável. Quando chegasse a agonia, suportá-la-ia com certa dignidade. Sua Igreja atenderia às suas necessidades e o sepultaria com honra, quando morresse; e, se não houvesse ninguém para chorá-lo, isso também poderia ser contado como uma recompensa final do celibato: sair furtivamente da vida, sem lamentar seus prazeres nem temer as obrigações não cumpridas. A voz calma, seca, de Blaise Meredith interrompeu-lhe o pensamento». In Morris West, O Advogado do Diabo, 1959, Publicações Europa-América, 1993, ISBN 972-102-640-9.

 Cortesia de PEAmérica/JDACT

JDACT, Morris West, Literatura, Religião,