Roma... Veneza... Trento
«(…) Mas eu, reverendíssimo
padre, não estou para ir à Terra Santa!, exclamei. Não desejais ir? Por Deus,
sim! Quem o não deseja? Também eu gostaria, mas o pastor não deve abandonar as
suas ovelhas e este é o meu cuidado de dia e de noite. Logo que possa regresso
a Braga. Vós, porém, não tendes rebanho. Podereis ir à Terra Santa. Ireis
certamente, não é verdade? Quem dera! Ireis. Tornava eu a sentir que o barco da
minha vida era governado por um invisível timoneiro e que me rodeavam pessoas
sabedoras da minha identidade. Que espécie de sigilo calaria as suas bocas?
Punha-me a seriar os géneros de sigilos que conhecia: o da confissão, o de
certas profissões como a do médico e do advogado, o da razão de Estado, certos
sigilos morais, casuísticos... E que quereria dizer essa antecipada certeza
numa minha peregrinação à Terra Santa?... Dias depois a certeza confirmava-se e
de que maneira! Uma viagem que eu tinha por impossível poder para mim alcançar
me chegou em condições de a poder facilmente negociar para outros. O nosso
reverendíssimo padre geral, frei Francisco Zamora, nomeara guardião de Monte
Síão ao insigne padre frei Bonifácio Aragusa, pregador apostólico e leitor de
sagrada Teologia, e havia necessidade de revezar a família de frades que estavam
na Terra Santa, como era costume de três em três anos, a fim de que pudessem
regressar às suas províncias. Frei Bonifácio, veio à Cúria procurar-me. Era um
homem de grande estatura e muito venerável presença e acatamento. Olhos enormes
e formosos. A barba muito comprida e quase toda branca. Conversação delicada e
afável, ainda que temeroso quando mostrava gravidade. Amado de quase todos, de
muitos temido. Não poucas vezes mais tarde, lembra-me bem, indo ele na rua, ao
passar eu surpreendia pessoas que o ficavam a ver exclamando. Oh! Que bel’
fradaço!
Insistiu comigo para que
aceitasse ser seu companheiro nas diligências que se impunha fazer por
conventos franciscanos de Itália para constituir a nova família de frades.
Antes, porém, dizia-me ele, iríamos tomar a bênção a Sua Santidade Pio IV, que
teria certamente recomendações a fazer-nos. Não lhe iria frei Pantaleão dizer
que não, verdade? Frei Bonifácio,-respondi eu, não sei a que devo uma tão
imerecida atenção e tenho o vosso convite por uma bem particular mercê, como
cada uma das muitas que da Divina Majestade tenho recebido. Sua Santidade
acolheu-nos com mostras de entranhável amor, deu-nos a sua bênção e, quando nos
despedindo dele, pôs a mão familiarmente no ombro de frei Bonifácio e
recomendou: não era a primeira vez que frei Bonifácio se encarregava da
guardíania de Monte Sião. Sabia como confiava no saber e experiência, na
diplomacia dele para tratar não só com os turcos, que por mal de nossos pecados
têm em seu poder aquele chão sagrado, mas também, o que por vezes era ainda
mais difícil, com as outras comunidades cristãs que têm assento junto do túmulo
de Cristo. Recordava-lhe que não ordenasse cavaleiros do Santo Sepulcro senão a
pessoas muito nobres e ilustres.
Depois
de o investir de toda a autoridade para o tocante ao cristianismo de Terra Santa,
acrescentou-nos grandes ofertas da sua parte e mandou que nos fosse entregue um
rico ornamento para as cerimónias solenes da Semana Santa em Jerusalém. A mim
fez-me confessor apostólico. Entrava Março de quinhentos e sessenta e dois e a
natureza benigna começava a anunciar a Primavera. Não havia tempo a perder.
Partimos de Roma e fomos correr algumas províncias franciscanas mais cercãs
buscando frades. Não se tornava fácil a escolha, dado o particular teor da
missão a que se destinavam. Cumpria que fossem os mais devotos, virtuosos e
quietos que se podiam achar. Portanto, sobre o seu feitio e comportamento se
fazia secreto exame com que muito se sobrecarregavam as consciências dos
prelados locais e padres velhos dos conventos. Fomos assim juntando até cerca
de sessenta frades. Dávamos-lhes as obediências para que com elas nos fossem esperar
a Veneza, onde se estava preparando a nau dos peregrinos que haviam de ir à
Terra Santa. É este um velho costume da Senhoria de Veneza, o de todos os anos
mandar aparelhar uma nau das melhores que tem, para, juntamente com ir negociar
seus tratos a terras do Oriente, levar também os peregrinos que vão a Jerusalém.
Ordinariamente está a nau prestes por alturas da Ascensão, mas as mais das
vezes não parte antes do São João. Nesta nau dos peregrinos havia de seguir
também, este ano, a família dos franciscanos que frei Bonifácio e eu tínhamos
reunido». In Fernando Campos, A Casa do Pó, Difel, 1986, Editora Objectiva,
Alfaguara, 2012, ISBN 978-989-672-114-5.
Cortesia de Difel/Alfaguara/JDACT
A Arte da Escrita, Fernando Campos, JDACT, Literatura,