1126
Viseu, Sexta-Feira Santa, Abril de 1126
«(…) Num dos cantos da igreja,
logo à direita da porta e bem longe do altar do prior Teotónio, um homem velho
e de longas barbas brancas estava ajoelhado em silenciosa reza, de olhos
cerrados e apoiado com a mão direita na sua imponente espada. No entanto, o que
mais o distinguia não era a singular postura, mas sim o manto branco que o
envolvia totalmente, fazendo-o parecer um boneco de neve. Ninguém tivera a
ousadia de interromper o seu retiro e a cerimónia de representação da morte de
Cristo tinha decorrido sem que o importunassem, e também sem que ele mudasse de
posição. Só se mexeu quando dona Teresa se aproximou, acompanhada de Fernão
Peres Trava, de Paio Soares e de seu filho Ramiro. Levantou-se, sempre apoiado
na espada, e enfrentou-os sério e mudo. Eis o cavaleiro de que vos falei,
estimado Paio Soares, anunciou dona Teresa. Chama-se Gondomar e veio de Jerusalém.
Paio Soares esboçou um subtil
sorriso ao ouvir aquele estimado. A rainha estava a esforçar-se para
recuperar o seu afecto. Observou o visado com curiosidade. O regresso da Terra
Santa e o manto branco que o cobria conferiam-lhe uma aura calma e pura. É uma
honra, declarou Paio Soares. Os que vão à cidade do Santo Sepulcro são mais
santos do que os que ficam. O velho Gondomar retorquiu-lhe: um dia podereis ir
também, quem sabe numa gloriosa cruzada. Paio Soares ergueu a sobrancelha,
interessado. Prepara-se nova cruzada e pretendem a minha ajuda? A rainha
portucalense atrapalhou-se, ligeiramente nervosa. A seu lado, Fernão Peres
esclareceu o equívoco: não. A Ordem de Gondomar vai instalar-se no Condado para
lutar contra os infiéis. Dona Teresa admirou-o, orgulhosa. O amante
expressava-se melhor do que ela. Contudo, era imperativo que falasse, queria
cativar Paio Soares, dando um primeiro passo para recuperar o apoio dos
relutantes portucalenses.
Vou
doar Soure à Ordem dos Pobres Cavaleiros de Cristo, informou. Paio Soares
revelou o seu espanto: para que quereis Soure? Só há lá feras, lobos e ursos! A
sua pergunta foi dirigida a Gondomar, que suspirou, como se carregasse às costas
o peso de décadas de lutas com os mouros. É a primeira linha do combate. Há que
afastar os sarracenos dessas terras, tão ricas e espirituais. Como defende o
abade de Claraval, não se combatem os infiéis apenas em Jerusalém! Paio Soares
conhecia a influência de Bernardo Claraval na cristandade e sabia igualmente
que os franceses haviam sempre apoiado o conde Henrique contra Afonso VI. Porém,
humilhado e depois falecido o seu paladino, o partido francês quase
desaparecera. No presente, as abadias de Cluny, Cister e Claraval limitavam-se
a defender Paio Mendes, arcebispo de Braga, contra as ambições hegemónicas do
prelado de Compostela, mas tinham-se alheado das bulhas sangrentas entre os
reinos hispânicos. Estariam agora a regressar? Virando-se para a rainha, Paio
Soares questionou-a: dona Teresa, quereis que vá batalhar para Soure? A mãe de
Afonso Henriques soltou uma curta gargalhada. Cruzes, nem pensar! Queremos o
vosso bem! É tempo de vos casardes de novo e de fazer um filho varão! A seu
lado, o sagaz Fernão Peres murmurou: vi-vos há pouco a falar com a minha
sobrinha Chamoa. Excitado, Paio Soares confirmou o seu encantamento: é muito
graciosa e gentil!
O pobre Ramiro, que um dia me
reportou esta conversa, estremeceu, aterrado. O pai estava claramente
entusiasmado com Chamoa, e ele, que em Ponte de Lima se enamorara,
aterrorizou-se com a possibilidade de o progenitor tomar a sua amada e começou
a sentir náuseas. Durante muito tempo, ficava assim na presença do pai, o
coitado do Ramiro. À sua frente, dona Teresa animou-se: é meu desejo
arranjar-vos bom casamento e um cargo honroso! Com fabricada humildade,
adiantou: faz-me falta um mordomo-mor. Paio Soares piscou os olhos, confundido.
O posto de mordomo-mor era o mais importante na corte e estava vago. Aquele
convite significava que o casal régio queria o principal nobre portucalense
numa posição de destaque! E a contrapartida era um enlace religioso com aquela
belíssima galega... Que vos parece?, inquiriu Fernão Peres Trava». In
Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Por Amor a uma Mulher, Casa das Letras,
LeYa, 2015, ISBN 978-989-741-262-2.
Cortesia de CdasLetras/LeYa/JDACT
JDACT, Domingos Amaral, A Arte, Literatura,