«(…) Ouvindo a voz dela, na temperatura amena de uma tarde de Outono, Tom fechou os olhos e imaginou-a como uma garota de peito chato e cara suja, sentada a uma mesa comprida com os truculentos companheiros do pai, bebendo cerveja forte, arrotando e cantando canções sobre batalhas, pilhagens e estupros, cavalos, castelos e virgens, até cair adormecida com a cabecinha apoiada na tábua áspera. Se ao menos pudesse ter permanecido com o peito chato para sempre, teria sido feliz. Mas chegou a época em que os homens começaram a olhar para ela de modo diferente. Já não riam as gargalhadas quando dizia: saia do meu caminho senão cortarei fora suas bolas e as darei para os porcos. Alguns ficavam olhando, quando tirava a túnica de lã e se deitava para dormir com a camisa comprida, de linho, que usava por baixo. Quando urinavam no mato, viravam de costas para ela, o que nunca faziam antes. Um dia ela viu o pai mergulhado numa conversa com o sacerdote da paróquia, um raro acontecimento, e os dois ficavam olhando para ela o tempo todo, como se falassem a seu respeito. Na manhã seguinte seu pai disse-lhe: vá com Henry e Everard e faça o que eles disserem. Depois deu um beijo na sua testa. Ellen perguntou-se que diabo tinha acontecido com ele, estava ficando mole com a idade? Selou seu corcel cinzento, recusava-se a montar um palafrém, mais adequado a senhoras, ou um pónei de criança, e partiu com os dois homens de armas.
Eles a levaram a um convento e a
deixaram ali. O local todo tremia, com suas pragas obscenas, enquanto os dois
homens se afastavam. Ela esfaqueou a abadessa e voltou a pé para a casa do pai.
Ele a mandou de volta, mãos e pés atados, e amarrada na sela de um jumento.
Puseram-na de castigo numa cela até que o ferimento da abadessa sarou. Ali era
frio, húmido e escuro como a noite, e havia água para beber mas nada para
comer. Quando a deixaram sair da cela, mais uma vez voltou andando para casa. Seu
pai a devolveu novamente, e então a açoitaram antes de a empurrarem na cela. Acabaram
por vencê-la, é claro, e Ellen vestiu o hábito de noviça, obedeceu às regras e
aprendeu as orações, mesmo que no fundo do coração detestasse as freiras,
desprezasse os santos e não acreditasse, em princípio, em nada que qualquer
pessoa lhe dissesse a respeito de Deus. Mas aprendeu a ler e escrever, passou a
dominar a música, os números e o desenho, assim como acrescentou o latim ao
francês e inglês falados na casa do seu pai. A vida no convento, afinal, não
foi tão ruim assim. Era uma comunidade de um único sexo, com suas regras e
rituais peculiares, e isso era exactamente aquilo com que estava acostumada.
Todas as freiras tinham que fazer algum trabalho físico, e Ellen foi designada
para cuidar dos cavalos. Antes que se passasse muito tempo, já era a encarregada
do estábulo.
A pobreza jamais a preocupou. A
obediência não veio com facilidade, mas acabou vindo. A terceira regra,
castidade, nunca a incomodou, embora de vez em quando, só para contrariar a
abadessa, ela apresentasse uma ou outra das noviças aos prazeres do... Agnes
interrompeu a história de Ellen nesse ponto e, levando Martha, foi procurar um
regato onde pudesse lavar o rosto da menina e limpar a sua túnica. Levou Alfred
também, como medida de protecção, embora dissesse que não ia se afastar a uma
distância superior a um grito. Jack levantou-se para segui-los, mas Agnes
disse-lhe firmemente que ficasse, e o menino pareceu compreender, pois
sentou-se de novo. Tom observou que Agnes conseguiu levar os filhos para onde não
mais pudessem ouvir aquela história ímpia e indecente, deixando Tom ouvi-la.
Um dia, prosseguiu Ellen, o
palafrém da superiora mancou, quando ela estava ausente do convento há diversos
dias. O priorado de Kingsbridge por acaso era perto, de modo que a abadessa
pediu emprestado ao prior outro animal. De volta ao convento, disse a Ellen
para devolver o cavalo emprestado e trazer o palafrém manco. Ali, no estábulo
do mosteiro, à vista da velha catedral em ruínas de Kingsbridge, Ellen conheceu
um rapaz que parecia um cachorrinho que houvesse levado uma surra. Tinha a
expressão alerta e a graciosidade de um filhote, mas era acovardado e
assustado, como se toda a sua capacidade de brincar lhe tivesse sido arrancada
a pancadas. Quando Ellen falou, ele não entendeu. Ela tentou latim, mas ele não
era monge. Finalmente disse qualquer coisa em francês e, com o rosto iluminado de
alegria, ele lhe respondeu na mesma língua. Ellen nunca mais voltou ao
convento.
Daquele dia em diante passou a
viver na floresta, primeiro num abrigo rústico, feito de galhos e folhas,
depois numa caverna seca. Não tinha esquecido as habilidades masculinas que
aprendera na casa do pai: sabia caçar veados, pegar coelhos com armadilhas e
abater cisnes com o arco; sabia limpar a caça, eviscerá-la e prepará-la; sabia
inclusive retirar e curtir o couro e as peles para as suas roupas. Além de caça,
ela se alimentava de frutas silvestres, nozes e verduras. Qualquer coisa de que
precisasse, sal, tecidos de lã, um machado ou uma faca nova tinha que roubar. O
pior foi quando Jack nasceu...» In Ken Follett, Os Pilares da Terra, 1989,
Editorial Presença, 2007, ISBN 978-972-233-788-5.
Cortesia de EPresença/JDACT
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