quarta-feira, 2 de junho de 2021

Por Amor a uma Mulher. Domingos Amaral. «Em família, como anos mais tarde me confessou, Zaida pagava um preço pela sua popularidade. Com ciúmes, Fátima chamava-a constantemente de gorda ou balofa, acusando-a de comer de mais…»


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Viseu, Sexta-Feira Santa, Abril de 1126

«(…) Quanto a Ramiro, permaneceu sozinho, no meio do pátio, observado pela minha prima Raimunda, que se congratulava interiormente com as suas descobertas sobre a rival. Chamoa era muito dada, bastaram-lhe uns instantes para a topar. Não só se amigava com o primo Tougues, como tempos antes, em Ponte de Lima, se amigara com Ramiro! E agora, descarada, fazia olhinhos de corça ao pai dele! Aquelas pequenas nódoas na reputação da vivaça moça, sussurradas a ouvidos atentos e espalhadas por línguas palradoras, aniquilariam qualquer possível enlace com Afonso Henriques. O príncipe jamais casaria com uma tola que rodava de mão em mão. Jumenta, vou dar cabo de ti!, foi o que pensou a minha prima Raimunda, cada vez mais brava. Só depois olhou melhor para Ramiro e teve pena dele. Estarrecido, o pobre rapaz não conseguira balbuciar palavra enquanto vira o pai partir, de braço dado à beldade. Raimunda sentiu também uma certa cumplicidade de estatuto. Ramiro e ela eram semelhantes: os ilegítimos, os bastardos, cujo futuro seria a guerra ou o mosteiro. Ninguém nos quer para casar, lamentara-se depois minha prima. Ao longo da vida, dei-me conta de que o infortúnio de nascença é a razão de muitos ódios, e há quem nunca se liberte da sua condição de partida.

Viseu, Sexta-Feira Santa, Abril de 1126

Quem andais a espiar desta vez, ó vara de virar tripas? Rodando os pés no chão, Raimunda deu de caras com Fátima e com Zaida, as filhas de Zulmira, que as seguia, coberta por um manto roxo. Julgava-vos em Coimbra!, exclamou minha prima, surpreendida. Fátima libertou uma gargalhada desdenhosa, enquanto a irmã se refugiava na sombra da mãe. As três mouras continuavam prisioneiras dos cristãos, uma década depois de terem sido apanhadas. Fátima já contava dezanove anos, enquanto Zaida ia nos dezasseis. Por vezes, acompanhavam a corte de dona Teresa e haviam conhecido Guimarães e o Porto, Tui e Lamego, Braga e agora Viseu. No Inverno do ano anterior, tinham mesmo peregrinado até ao Mosteiro de Sahagún, passando de caminho por Astorga e Zamora, mas depois Zulmira adoecera de forma inesperada durante a descida para Toledo, a última cidade que estava previsto conhecerem naquele longo passeio, e regressara mais cedo com as filhas a Coimbra, enquanto dona Teresa seguia até à antiga capital visigótica.

Viemos festejar a Páscoa com os porcos, disparou Fátima. A filha bastarda de Ermígio Moniz semicerrou os olhos, irritada. Vede como falais, não tenho medo de vós. Fátima apontou o dedo para um curral nas traseiras dos edifícios, onde eram visíveis vários suínos a chafurdarem na lama. Estava a falar daqueles. Veloz de espírito, Raimunda retorquiu-lhe: os porcos deram tal susto ao vosso califa que ele se borrou de medo e há nove anos que não volta. Fátima preparava-se para disparar nova salva de crueldades, quando Zulmira se intrometeu, evitando o azedar da polémica. E vós, não ides à missa? É Sexta-Feira Santa. Raimunda enfrentou a distinta muçulmana com uma ponta de hostilidade, responsabilizando-a pelo desbragamento da filha. Tendes de pôr pimenta na língua da Fátima!

Nove anos depois da bulha infantil com Afonso Henriques, a mais velha das meninas mouras continuava uma fera bravia e indomável. Contava-se que certa vez tentara convencer um moçárabe de Coimbra a organizar uma fuga, levando-a dali com a mãe e com a irmã, provavelmente com destino a Córdova. A partir de então, todos andavam de olho nela, e rapidamente denunciavam qualquer engenhoso plano que elaborasse para se escapulir. Frustrada, a jovem moura vingava-se com ditos excessivos e cruéis, com os quais fustigava os cristãos. Embora por vezes temesse as imprevisíveis consequências da linguagem da filha, recordo-me bem do orgulho que Zulmira tinha nela, tão esperta e combativa. Além disso, e ao pé da minha prima Raimunda, que era só pele e ossos, Fátima destacava-se, exuberante e vistosa. Os longos cabelos negros, sempre desalinhados, o nariz fino e espetado, as sobrancelhas escuras e suaves, o queixo pontiagudo e uns olhos escuros, que pareciam azeitonas da Andaluzia a brilharem ao sol depois de colhidas, não faziam de Fátima uma mulher demasiado bela, como a irmã Zaida era, mas mesmo assim fascinava os machos com a forma como mexia as ancas, a maneira como se empertigava, espetando os pequenos seios para a frente, para que reparassem neles.

Sei do que falo, embora eu até fosse o que menos olhasse para as mouras, sobretudo a partir daquela Páscoa em Viseu. De qualquer forma, todos sabíamos que Fátima era virgem e que nunca se amigara com um cristão, pois destilava ódio aos seguidores de Jesus. Já a sua irmã Zaida, apesar de também intocada, era meiga e carinhosa, e dizia sempre que herdara o espírito sensível e caloroso dos haréns de Sevilha, do tempo do seu bisavô e rei Al-Mutamid, onde as mulheres se beijavam umas às outras, na aprendizagem constante dos prazeres mais profundos, que depois praticavam com os homens. Ela e a mãe dormiam na mesma cama, mas Fátima nunca participava nessas distrações, parecia fechada à festa dos sentidos. Em comum, as irmãs só tinham o negro dos olhos e dos longos cabelos. Enquanto Fátima apresentava um perfil agreste, cheio de arestas no rosto, Zaida era redonda de cara e de corpo, parecida com Zulmira, que topava os olhares gulosos que cristãos e moçárabes deitavam à filha mais nova, bem como os piropos com que homens e mulheres a brindavam!

Em família, como anos mais tarde me confessou, Zaida pagava um preço pela sua popularidade. Com ciúmes, Fátima chamava-a constantemente de gorda ou balofa, acusando-a de comer de mais e de não fazer exercícios. Todavia, ela não parecia importar-se. Não nascera para a ginástica nem para a guerra. Não sou nenhuma amazona, sou assim e tu és como és, nenhuma está mal ou bem, proclamara um dia, e a partir dessa data a irmã não mais a chamara para treinar com espadas ou punhais. A minha Maria Gomes diria certa vez que Zaida era um pote de mel, enquanto Fátima era uma vespa impetuosa. Com um carácter fluido e volúvel, Zaida nunca se enfurecia contra os outros ou contra o destino, e parecia sempre contemplativa e em paz com o mundo. Contudo, faltava-lhe a energia primária e bruta da irmã, e talvez por isso fosse dada a doenças. Por isso ou porque lia de mais, apanhando pouco sol e muito pó. O seu maior prazer era correr para as bibliotecas da Sé de Coimbra ou do Mosteiro de Guimarães, onde passava dias a devorar páginas, a ponto de preocupar a mãe, a quem ela parecia muitas vezes aluada, a viver num eterno mundo de fantasia e com demasiada curiosidade pelo Velho Testamento». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Por Amor a uma Mulher, Casa das Letras, LeYa, 2015, ISBN 978-989-741-262-2.

Cortesia de CdasLetras/LeYa/JDACT

JDACT, Domingos Amaral, A Arte, Literatura,