1126
Viseu, Sexta-Feira Santa, Abril de 1126
«(…) Nove anos depois daquela
manhã em Coimbra, em que perdera as esperanças de que o marido Taxfin as
salvasse do cativeiro, Zulmira mantinha como imperativo moral da sua existência
a fidelidade ao Corão, e não deixara as filhas submeterem-se às leis de Cristo.
Mas, como me explicou um dia Zaida, o seu fascínio pelo Génesis levava a mãe a
temer que ela cedesse a essa interdita tentação. Zaida absorvia como uma
esponja as influências espirituais de Roma que a rodeavam, ao contrário de Fátima
e da mãe. Se havia fé que ainda resistia em Zulmira era em Alá. O seu marido
Taxfin não voltara, nem nunca mais dera notícias. Embora o soubesse vivo, sabia
igualmente que ele já não era governador de Córdova e que nunca mais organizara
qualquer expedição ao Oeste. Nos primeiros anos daquela longa espera, ainda se
perguntara porquê. Torturada por tanto o desejar, questionara-se sobre o amor
que lhe tinha o marido e a sua recusa de voltar. Mas, com o tempo, essas questões
haviam perdido a pertinência, e em Viseu limitava-se a tentar manter as filhas
a salvo de sarilhos. Foi por isso que naquele momento, e para evitar que a
conversa entre Fátima e Raimunda azedasse ainda mais, Zulmira perguntou: e o
vosso amado Afonso Henriques já chegou? Ainda não o vi. Raimunda ficou de pé
atrás, respirou fundo e retorquiu: deve estar a vestir-se, virá com Lourenço e
com os irmãos. Mas para que quereis saber dele? Fátima soltou uma maldosa
gargalhada.
O principezinho do Condado veio
ver as moças, e a irmã, a Sancha Henriques, os moços! Dona Teresa quer casá-los
aos dois, e depressa! Fazendo uma careta jocosa, continuou: agora que a rainha
Urraca esticou o pernil, há mais pressa, não vá algum reino fugir-lhe! Raimunda
mostrou-se intrigada, como se não entendesse as implicações do que ouvira. O
Afonso Henriques é tão novo, a mãe quer casá-lo já? A impetuosa Fátima deu nova
risada e afirmou: à Sancha Henriques tem de ser um que lhe meta o cabresto! Depois,
baixou o tom de voz e provocou Raimunda: mas para o aleijadinho ainda é cedo.
Nunca conheceu mulher... Alguém tem de desmamar o bezerro antes da noite de núpcias,
senão é uma vergonha para o Condado! Irritada, Raimunda encostou-se à moura,
tentando intimidá-la: ele não ficou aleijado, está alto e forte! Fátima
recuperara aquela fraqueza antiga para desprezar Afonso Henriques, embora
parecesse agora mais interessada na suposta virgindade do príncipe, pois
acrescentou: seja como for, tem de ser desmamado. Não vos prestais ao serviço? Raimunda
cerrou os punhos, mas logo os libertou, pois viu que Zulmira e Zaida a miravam.
Fez um esforço para se acalmar. A feroz Fátima desferiu nova estocada: também,
magra como sois, ele nem endurece. Deve pensar que sois um rapaz!
Desta vez, Raimunda riu-se, pois
estava habituada àquela graçola recorrente. Até os primos lhe chamavam
Raimundo, na brincadeira. Nunca se ofendia, sobretudo porque Afonso Henriques não
os acompanhava nessas aberrantes apreciações. Com desdém, ripostou: Fátima, não
tendes muito mais carne do que eu! Raimunda captou que, por detrás do esgar de
indiferença da moura, pousou um ligeiro azedume, ela não gostava de ser
relembrada da sua magreza. Contudo e de surpresa, a inflamada mourisca mudou de
alvo, e Raimunda estremeceu. Dizem que a galeguinha de cabelos cor de mel é a
principal candidata para o príncipe aleijadinho. Já haveis visto a ruça? Embora
tivesse o coração a acelerar, Raimunda confirmou que vira Chamoa Gomes quando
esta passara por ali há pouco, a caminho da igreja onde o prior Teotónio iria
dizer a missa. Curiosa, prevendo os danos que podia causar, Fátima insistiu: e é
tão bonita quanto dizem? Tem cara de anjo? Nesse momento, ouviu-se pela
primeira vez a voz fina de Zaida, que interveio, corrigindo a irmã: os anjos não
são mulheres. Nem homens». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal,
Por Amor a uma Mulher, Casa das Letras, LeYa, 2015, ISBN 978-989-741-262-2.
Cortesia de CdasLetras/LeYa/JDACT
JDACT, Domingos Amaral, A Arte, Literatura,