«(…) Que fora aquilo? Tinha o depósito cheio, sim, praticamente cheio, porque diabo de lembrança. Manejou a alavanca das velocidades para meter a marcha atrás, mas a caixa não lhe obedeceu. Tentou forçar, mas as engrenagens pareciam bloqueadas. Que disparate. Agora avaria. O automóvel da frente avançou. Receosamente, a contar com o pior, engatou a primeira. Tudo perfeito. Suspirou de alívio. Mas como estaria a marcha atrás quando tornasse a precisar dela? Cerca de meia hora depois metia meio litro de gasolina no depósito, sentindo-se ridículo sob o olhar desdenhoso do empregado da bomba. Deu uma gorjeta absurdamente alta e arrancou num grande alarido de pneus e acelerações. Que diabo de ideia. Agora ao cliente, ou será uma manhã perdida. O carro estava melhor do que nunca. Respondia aos seus movimentos como se fosse um prolongamento mecânico do seu próprio corpo. Mas o caso da marcha atrás dava que pensar. E eis que teve de pensar mesmo. Uma grande camioneta avariada tapava todo o leito da rua. Não podia contorná-la, não tivera tempo, estava colado a ela. Outra vez a medo, manejou a alavanca, e a marcha atrás engrenou com um ruído suave de sucção. Não se lembrava de a caixa de velocidades ter reagido desta maneira antes. Rodou o volante para a esquerda, acelerou, e de um só arranco o automóvel subiu o passeio, rente à camioneta, e saiu do outro lado, solto, com uma agilidade de animal. O diabo do carro tinha sete fôlegos. Talvez que por causa de toda esta confusão do embargo, tudo em pânico, os serviços desorganizados tivessem feito meter nas bombas gasolina de muito maior potência. Teria a sua graça. Olhou o relógio. Valeria a pena ir ao cliente? Por sorte apanharia o estabelecimento ainda aberto. Se o trânsito ajudasse, sim, se o trânsito ajudasse, teria tempo. Mas o trânsito não ajudou.
Tempo do Natal, mesmo faltando a
gasolina, toda a gente vem para a rua, a empatar quem precisa de trabalhar. E
ao ver uma transversal descongestionada, desistiu de ir ao cliente. Melhor seria
explicar qualquer coisa no escritório e deixar para a tarde. Com tantas
hesitações desviara-se muito do centro. Gasolina queimada sem proveito. Enfim,
o depósito estava cheio. Num largo ao fundo da rua por onde descia viu outra
fila de automóveis, à espera de vez. Sorriu de gozo e acelerou, decidido a
passar roncando contra os entanguidos automobilistas que esperavam. Mas o carro,
a vinte metros, obliquou para a esquerda, por si mesmo, e foi parar,
suavemente, como se suspirasse, no fim da fila. Que coisa fora aquela, se não
decidira meter mais gasolina? Que coisa era, se tinha o depósito cheio? Ficou a
olhar os diversos mostradores, a apalpar o volante, custando-lhe a reconhecer o
carro, e nesta sucessão de gestos puxou o retrovisor e olhou-se no espelho. Viu
que estava perplexo e considerou que tinha razão. Outra vez pelo retrovisor distinguiu
um automóvel que descia a rua, com todo o ar de vir colocar-se na fila. Preocupado
com a ideia de ficar ali imobilizado, quando tinha o depósito cheio, manejou
rapidamente a alavanca para a marcha atrás. O carro resistiu e a alavanca
fugiu-lhe das mãos. No segundo imediato achou-se apertado entre os seus dois
vizinhos. Diabo. Que teria o carro? Precisava de levá-lo à oficina. Uma marcha
atrás que funciona ora sim ora não, é um perigo.
Tinham passado mais de vinte
minutos quando fez avançar o carro até à bomba. Viu chegar o empregado e a voz
apertou-se-lhe ao pedir que atestasse o depósito. No mesmo instante, fez uma
tentativa para fugir à vergonha, meteu uma rápida primeira e arrancou. Em vão.
O carro não se mexeu. O homem da bomba olhou-o desconfiado, abriu o depósito,
e, passados poucos segundos, veio pedir o dinheiro de um litro, que guardou
resmungando. No instante logo, a primeira entrava sem qualquer dificuldade e o
carro avançava, elástico, respirando pausadamente. Alguma coisa não estaria bem
no automóvel, nas mudanças, no motor, em qualquer sítio, diabo levasse. Ou estaria
ele a perder as suas qualidades de condutor? Ou estaria doente? Dormira ainda
assim bem, não tinha mais preocupações da vida que em todos os outros dias
dela. O melhor seria desistir por agora de clientes, não pensar neles durante o
resto do dia e ficar no escritório. Sentia-se inquieto. Em redor de si, as
estruturas do carro vibravam profundamente, não à superfície mas no interior
dos aços, e o motor trabalhava com aquele rumor inaudível de pulmões enchendo e
esvaziando, enchendo e esvaziando. Ao princípio, sem saber porquê, deu porque
estava a traçar mentalmente um itinerário que o afastasse doutras bombas de
gasolina, e quando percebeu o que fazia assustou-se, temeu-se de não estar bom
da cabeça. Foi dando voltas, alongando e cortando caminho, até que chegou em
frente do escritório. Pôde arrumar o carro e suspirou de alívio». In
José Saramago, Objecto Quase, 1978, Porto Editora, 2015, ISBN
978-972-004-655-0.
Cortesia de PortoE/JDACT
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