quarta-feira, 2 de junho de 2021

Destino de Amor. Roma 40 D. C. Adele Vieri Castellano. «Lívia apertou com força o cilindro de chumbo que levava nos braços. O tempo estava a mudar. Uma rajada de vento levantou o pó da estrada e agitou a túnica do tribuno»


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(Odeio, mas não consigo deixar de desejar o que odeio). In Ovídio, Amores

Roma, 793 a.u.c., oitavo dia antes das calendas de Iulius

(40 d.C., 24 de Junho)

«(…) Nas ruas estreitas, repletas de gente e fétidas da Suburra, duas mulheres caminhavam em passo apressado, com a cabeça tapada pela palla e inclinada sobre as sandálias de couro. Saltitavam de um lado para o outro da estrada, onde poças de resíduos, objectos abandonados e mendigos se acumulavam. Domina, tem cuidado…, presta atenção!, gritou uma delas. A outra, que tinha mais um palmo de altura e levava na mão um objecto cilíndrico bastante pesado, voltou-se olhando de soslaio para ela. Ancilla! Não me chateies! Já falta pouco. Tenho assuntos mais importantes em que pensar do que numa poça. Virando-se, Lívia tropeçou num homem corpulento de rosto suado, olhos raiados de sangue e dentes podres. Sentiu-se agarrada por dedos fortes como um alicate e foi abanada duas ou três vezes com violência. Vê por onde andas, sua estúpida. Ancilla foi em seu auxílio, mas não conseguiu cuspir no rosto do desconhecido. Larga já a domina!, exclamou, por fim, cravando-lhe as unhas no braço. O homem não largou a sua presa e deu uma rápida e inevitável bofetada à jovem escrava, fazendo-a cair numa das poças que tivera tanto cuidado em evitar. Alguns transeuntes abrandaram o passo.

Num dos lados do local onde se encontravam havia uma casa barulhenta de vários andares, e, no outro, um lupanar, em cuja entrada estavam duas prostitutas. Olha só que belo pedaço de mulher, suspirou o homem com um hálito horrível. Não tinha mau gosto. A jovem donzela tinha uns olhos de esmeralda que sobressaíam de um rosto rosado perfeito. Aonde vais, minha bela? Vamos até ao lupanar para me falares de ti. Lívia pontapeou o pó, atirando-lho ao rosto. Ancilla lançou-se para as costas do homem, segurando-o pelo pescoço como se fosse um touro. O homem tentou livrar-se dela sem, contudo, largar Lívia. A confusão aumentou, as duas prostitutas torciam pela escrava e alguns transeuntes riam-se alarvemente. A mão imunda arrancou a palla da cabeça de Lívia, levando consigo os ganchos de madeira e os laços de couro que lhe seguravam o penteado. Os cabelos castanho-escuros da jovem caíram-lhe, soltos, pelas costas. Os espectadores estavam deliciados e incitaram o homem. Com um sorriso idiota, enquanto os punhos de Ancilla lhe martelavam a cabeça, o miserável tentou rasgar a túnica imaculada de Lívia, mas naquele momento uma voz autoritária ressoou atrás deles.

O que se passa, Aulo Pláucio? Não quiseste pagar a diversão? As pessoas afastaram-se, e fez-se um silêncio sepulcral. Aulo Pláucio ficou sozinho no meio da rua. O homem que falara deu alguns passos. A sua cabeça descoberta elevava-se acima dos presentes, e o corpo musculado e bronzeado colocava-o numa categoria à parte. Por cima da sua lorica musculata de couro estava o laticlavo de púrpura que indicava o seu estatuto. O tribuno laticlávio que salvou a vida ao imperador! O homem que Calígula trouxe da Germânia para Roma. Marco Quinto Rufo! O nome foi recebido pela multidão com um clamor, e muitos curiosos esticaram o pescoço. Rufo, não fiz nada. Estas desavergonhadas estão a tentar matar-me! Quando ao lado do tribuno apareceram quatro guardas pretorianos, a multidão começou a dispersar. Ancilla saltou das costas do gorducho e deu-lhe um valente pontapé nas canelas. Lívia, já livre, virou-se. Quem era aquele indivíduo que silenciara a multidão?

Deparou-se-lhe um tronco enorme com dois braços nus até aos bíceps musculados. No braço esquerdo, uma comprida cicatriz desenhava uma serpente de carne que se estendia até ao pulso, escondido por uma bracelete de ferro. Era tão alto que teve de levantar a cabeça para ver o seu rosto. Foi tomada por um sentimento indefinido. Uma sensação que há meses não sentia e que lhe atravessou o corpo como uma chama ardente, como quando, depois de um grande susto, o coração bate com força e o sangue parece crepitar. Assustada, olhou-o fixamente. Ficou contente por não ter de lhe dirigir a palavra. No seu rosto duro, os olhos cruéis brilhavam sob as sobrancelhas encrespadas. Ele avaliou-a como se fosse mercadoria e, depois de a observar com grande frieza, voltou-se para os curiosos que haviam ficado. Vão-se embora daqui, disse; apesar de ter falado em voz baixa, as pessoas obedeceram prontamente. Até as duas prostitutas desapareceram no lupanar, baixando o cortinado que tapava a entrada.

Lívia apertou com força o cilindro de chumbo que levava nos braços. O tempo estava a mudar. Uma rajada de vento levantou o pó da estrada e agitou a túnica do tribuno. Bastou-lhes um gesto, e dois dos quatro pretorianos levantaram do chão o canalha que a tinha agarrado. Ou tinha sido ela que o agarrara? Lívia já não se lembrava de como começara a rixa. Marco Quinto Rufo aproximou-se delas. Uma subtil cicatriz atravessava-lhe o rosto barbeado. Tinha lábios carnudos, bem definidos, mas cerrados. Mulher, disse-lhe em tom severo. O que estás aqui a fazer? E ele, tribuno laticlávio, não devia estar a combater os inimigos de Roma? Lívia endireitou-se para parecer mais alta e fitou-o nos olhos. Sabia que não tinha feito nada de mal». In Adele Vieri Castellano, Roma 40 D. C. Destino de Amor, 2012, Quinta Essência, Oficina do Livro, LeYa, 2014, ISBN 978-989-726-128-2.

Cortesia de QEssência/OdoLivro/LeYa/JDACT

JDACT, Adele Vieri Castellano, Literatura, Roma, A Arte,