domingo, 20 de junho de 2021

As Luzes de Leonor. A Arte de Maria Teresa Horta. «… os nervos quebradiços da marquesa de Alorna, com a sua fragilidade doentia, tal como o estouvamento mimado da filha mais nova. Vamos ter, por certo, uma convivência difícil»


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1758-1768

«(…) Entraram noite alta, a contragosto, contritas, lívidas. As três amparando-se umas às outras, o bistre das olheiras a macerar-lhes as faces ainda molhadas pelas lágrimas, o rapazinho, que nem devia ter vindo, agarrado com susto ao vestido da mãe. Só a menina mais velha me procurou os olhos, a querer prendê-los nos seus numa teima assombrada, jeito de quem é brava de coração e carácter. A interrogar, a querer entender e a duvidar ainda. Oito anos obstinados, ásperos e esquivos, almiscarado odor a bergamota toldado pelo perfume de água de rosas lívidas, nela havia já uma certa altivez orgulhosa e aristocrática; mais firme e determinada do que a mãe e a irmã, a avaliar-me a mim, prioresa do convento de São Félix em Chelas, onde não se sabe por quanto tempo irão ficar reclusas. Como se ela pudesse entender ou adivinhar que só as recebo porque a isso me obriga a obediência devida ao vigário geral do Patriarcado, o arcebispo de Lacedemónia, a cumprir por sua vez ordens do ministro de Estado de El-Rei José I. Não me cabe reparar no mundo fora da casa do Senhor, e menos ainda ter opinião sobre os assuntos do Reino, mas a partir de hoje temo bastante pela instabilidade do nosso convento, devido à revolta que elas possam arrastar para dentro destas paredes sagradas, com os seus destinos desordenados. Temo sobretudo a rebeldia de Leonor e a maturidade invulgar que apercebi no seu impenetrável olhar de veludo incerto, embora também me preocupe a presença do menino, que terá rapidamente de abandonar o convento, e os nervos quebradiços da marquesa de Alorna, com a sua fragilidade doentia, tal como o estouvamento mimado da filha mais nova. Vamos ter, por certo, uma convivência difícil.

O arcebispo de Lacedemónia comparece no dia seguinte no convento de Chelas, a fim de comunicar à madre superiora as directrizes do conde de Oeiras no que diz respeito à estada no mosteiro da marquesa de Alorna, dona Leonor Lorena, e à das suas filhas. O menino terá de sair em breve, mas não o comunica à prelada. Preocupada com a visita, de que não estava à espera, esta consegue suster no peito a indignação nela desencadeada pela presença das três estranhas chegadas noite alta, na véspera, a fim de cumprirem castigo de reclusão, e embora duas das intrusas sejam crianças isso não lhe importa, pois em todas corre nas veias o sangue condenado dos Távora. Continuando o arcebispo num silêncio pesado, olhos pequenos e astutos tentando captar os dela, esquivos como se temesse revelar o que não deve, a prelada acaba por tomar a palavra, mãos nervosas a subirem-lhe ao rosto longo e a sublinharem as palavras das quais, de início, tenta ainda encobrir o tom desabrido…

Vossa Eminência vai perdoar-me a impertinência, mas vejo-me na necessidade absoluta de Vos comunicar a grave preocupação que de imediato me invadiu, ao constatar que com a marquesa de Alorna vinham não só as filhas mas também um filho! Ora, num convento de religiosas, Vossa Eminência sabe não se poder criar um menino, vê-lo crescer todos os dias a ficar mais homem… Já me basta a pesada tarefa de gerir este convento, a tentar harmonizar freiras e noviças, pensionistas e recolhidas, senhor arcebispo de Lacedemónia, mais a mais vendo-me agora obrigada, no cumprimento da ordem do senhor ministro de Estado, a acolher com generosidade nesta casa do Senhor membros de uma família banida por Sua Majestade, e isso já me basta senhor arcebispo. Estranhando não ter sido ainda interrompida, a madre abadessa, que ao deixar-se embalar pelo discurso se levantara, volta-se para o prelado, que continua a fitá-la num pesado mutismo, com um meio sorriso sarcástico nos lábios finos.

Tempo depois, tal como era esperado pela mãe e pelas irmãs, apesar de não o confessarem umas às outras, o desembargador Eusébio Tavares volta a Chelas acompanhado pela tropa, a fim de levar Pedro de volta à casa da Boa Morte, onde continuam os criados e alguns parentes afastados. Ignorando ter sido Sebastião José quem dera ordem no sentido de o menino não ser fechado num convento de religiosas, Leonor Lorena domina-se, tentando serenar-se, a conformar-se já com a solução encontrada. Pede apenas uns instantes sozinha com o filho, que sente a tremer de susto, mão gelada apertada na sua. E quando voltam a sair do quarto, o menino vem muito branco e calado, mas sem lágrimas no rosto crispado. Filho corajoso!, pensa comovida, já a arder em febre». In Maria Teresa Horta, As Luzes de Leonor, Publicações dom Quixote, 2011, Prémio D. Dinis I, ISBN 978-972-204-733-3.

Cortesia de PdQuixote/JDACT

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