1758-1768
«(…) Entraram noite alta, a contragosto,
contritas, lívidas. As três amparando-se umas
às outras, o bistre das olheiras a macerar-lhes as faces ainda molhadas pelas
lágrimas, o rapazinho, que nem devia ter vindo, agarrado com susto ao vestido
da mãe. Só a menina mais velha me procurou os olhos, a querer prendê-los nos
seus numa teima assombrada, jeito de quem é brava de coração e carácter. A
interrogar, a querer entender e a duvidar ainda. Oito anos obstinados, ásperos
e esquivos, almiscarado odor a bergamota toldado pelo perfume de água de rosas
lívidas, nela havia já uma certa altivez orgulhosa e aristocrática; mais firme
e determinada do que a mãe e a irmã, a avaliar-me a mim, prioresa do convento
de São Félix em Chelas, onde não se sabe por quanto tempo irão ficar reclusas.
Como se ela pudesse entender ou adivinhar que só as recebo porque a isso me
obriga a obediência devida ao vigário geral do Patriarcado, o arcebispo de
Lacedemónia, a cumprir por sua vez ordens do ministro de Estado de El-Rei José
I. Não me cabe reparar no mundo fora da casa do Senhor, e menos ainda ter
opinião sobre os assuntos do Reino, mas a partir de hoje temo bastante pela
instabilidade do nosso convento, devido à revolta que elas possam arrastar para
dentro destas paredes sagradas, com os seus destinos desordenados. Temo
sobretudo a rebeldia de Leonor e a maturidade invulgar que apercebi no seu impenetrável olhar de
veludo incerto, embora também me preocupe a presença do menino, que terá
rapidamente de abandonar o convento, e os nervos quebradiços da marquesa de
Alorna, com a sua fragilidade doentia, tal como o estouvamento mimado da filha
mais nova. Vamos ter, por certo, uma convivência difícil.
O arcebispo de Lacedemónia comparece no dia seguinte no
convento de Chelas, a fim de comunicar à madre superiora as directrizes do
conde de Oeiras no que diz respeito à estada no mosteiro da marquesa de Alorna,
dona Leonor Lorena, e à das suas filhas. O menino terá de sair em breve, mas
não o comunica à prelada. Preocupada com a visita, de que não estava à espera,
esta consegue suster no peito a indignação nela desencadeada pela presença das
três estranhas chegadas noite alta, na véspera, a fim de cumprirem castigo de
reclusão, e embora duas das intrusas sejam crianças isso não lhe importa, pois
em todas corre nas veias o sangue condenado dos Távora. Continuando o arcebispo
num silêncio pesado, olhos pequenos
e astutos tentando captar os dela, esquivos como se temesse revelar o que não
deve, a prelada acaba por tomar a palavra, mãos nervosas a subirem-lhe ao rosto
longo e a sublinharem as palavras das quais, de início, tenta ainda encobrir o
tom desabrido…
Vossa Eminência vai perdoar-me a impertinência, mas vejo-me
na necessidade absoluta de Vos comunicar a grave preocupação que de imediato me
invadiu, ao constatar que com a marquesa de Alorna vinham não só as filhas mas
também um filho! Ora, num convento de religiosas, Vossa Eminência sabe não se
poder criar um menino, vê-lo crescer todos os dias a ficar mais homem… Já me
basta a pesada tarefa de gerir este convento, a tentar harmonizar freiras e
noviças, pensionistas e recolhidas, senhor arcebispo de Lacedemónia, mais a
mais vendo-me agora obrigada, no cumprimento da ordem do senhor ministro de Estado,
a acolher com generosidade nesta casa do Senhor membros de uma família banida
por Sua Majestade, e isso já me basta senhor arcebispo. Estranhando não ter
sido ainda interrompida, a madre abadessa, que ao deixar-se embalar pelo
discurso se levantara, volta-se para o prelado, que continua a fitá-la num
pesado mutismo, com um meio sorriso sarcástico nos lábios finos.
Tempo depois, tal como era esperado pela mãe e pelas irmãs, apesar
de não o confessarem umas às outras, o desembargador Eusébio Tavares volta a
Chelas acompanhado pela tropa, a fim de levar Pedro de volta à casa da Boa
Morte, onde continuam os criados e alguns parentes afastados. Ignorando ter sido
Sebastião José quem dera ordem no sentido de o menino não ser fechado num convento de religiosas, Leonor Lorena domina-se, tentando serenar-se, a conformar-se já com a
solução encontrada. Pede apenas uns instantes sozinha com o filho, que sente a tremer
de susto, mão gelada apertada na sua. E quando voltam a sair do quarto, o
menino vem muito branco e calado, mas sem lágrimas no rosto crispado. Filho corajoso!, pensa comovida, já a
arder em febre». In Maria Teresa Horta, As Luzes de Leonor,
Publicações dom Quixote, 2011, Prémio D. Dinis I, ISBN
978-972-204-733-3.
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