1754-1758
«(…) Na cela que durante dezoito anos seria o meu quarto, deitada na cama estreita e fria, fiquei de olhos abertos toda a madrugada, possuída pelo medo daquilo que, não podendo ainda entender, não deixava de me aterrorizar pelo seu abismo. No compartimento ao lado ficou minha mãe, abraçada a Pedro, na inútil tentativa de descansar e acalmá-lo um pouco; dias depois, ele seria retirado da nossa companhia, e levado de volta para a casa na Rua da Boa Morte. Só então comecei a perceber a verdadeira dimensão da tragédia que arruinara as nossas vidas, apesar de continuar a escapar-me a essência do que nos acontecia, espécie de cataclismo desencadeado pelo poder fero e tirano do secretário de Estado Sebastião José Carvalho Melo, verdugo da nossa família. Da sua tirania cruel falei em muitos versos… Deste duro arpão que rasga o peito, monstro que a alma devora sem piedade… Dessa primeira noite em Chelas guardo ainda com inacreditável nitidez a fantasia esperançosa de, na manhã seguinte, acordar em casa, ou nos braços da avó Leonor Távora, que na altura eu ainda não sabia presa. E quando mais tarde uma freira maldosa me contou com todos os pormenores a sua morte bárbara, senti despertar o ódio, sentimento até então meu desconhecido; sentimento confuso mas pertinaz a envenenar-me o sangue, a tentar tomar conta do meu coração de menina assustada. No entanto, os livros, as Luzes e a poesia salvaram-me, ao entornarem a doçura do mel do favo onde o fel e a raiva já haviam começado o seu trabalho devastador.
1758-1768
Chegam ao convento de São Félix por entre o ladrar de cães
estremunhados, o metálico ruído das ferraduras dos cavalos, das rodas das
carruagens, e o choro do menino pequeno a procurar amparo no ombro da mãe,
perdida no alheamento em que ficara, lágrimas deslizando-lhe devagar no rosto,
desde que deixara para trás o abrigo da casa. O meu filho!, gritara num apelo aflito no momento em que a separavam de Pedro,
agarrado às suas saias. O menino fica!, respondera-lhe o desembargador Eusébio Tavares que já lhe levara
o marido, quando à sua ordem os soldados tentavam arrancar dela a criança em
pranto. Revolveu-se Leonor
Lorena na dor que lhe tolheu o passo, alegando que o menino ficaria no
desamparo. E vendo o desembargador hesitar, recorreu a todos os argumentos
maternos, voz trémula e comedida embora trespassada pela cruel
lâmina da desgraça. Conseguindo desse modo comovê-lo, mal o ouviu dar a ordem
no sentido de Pedro seguir com ela, baixara a cabeça e deixara-se levar em
silêncio. Os múltiplos sentimentos que
na altura não expressara, confessá-los-á mais tarde em cartas clandestinas
enviadas ao marido, os soluços cosidos no peito, os dedos incertos a
fazerem-lhe tremer a letra mal desenhada no papel grosseiro, obtido à custa dos
poucos dinheiros que lhe restavam. Moedas encontradas no fundo de uma bolsa trazida por Leonor de
cima da cómoda dos aposentos dos pais, e que ela encobrira depois na roda da
capa onde a ama a embrulhara, antes de serem levadas para o carro, à espera
diante da entrada, de cortinas fechadas. A menina fique calada pois ninguém lhe está a fazer mal!, ralhou um dos soldados a Maria, que gritava enquanto, agarrada
pela cintura, era sentada no banco corrido da carruagem. E formada a escolta
pela tropa, o cocheiro fez os cavalos tomarem o caminho dos campos, a coberto
da tempestade». In Maria Teresa Horta, As Luzes de Leonor,
Publicações dom Quixote, 2011, Prémio D. Dinis I, ISBN
978-972-204-733-3.
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