sábado, 19 de junho de 2021

As Luzes de Leonor. A Arte de Maria Teresa Horta. «Deste duro arpão que rasga o peito, monstro que a alma devora sem piedade…»


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1754-1758

«(…) Na cela que durante dezoito anos seria o meu quarto, deitada na cama estreita e fria, fiquei de olhos abertos toda a madrugada, possuída pelo medo daquilo que, não podendo ainda entender, não deixava de me aterrorizar pelo seu abismo. No compartimento ao lado ficou minha mãe, abraçada a Pedro, na inútil tentativa de descansar e acalmá-lo um pouco; dias depois, ele seria retirado da nossa companhia, e levado de volta para a casa na Rua da Boa Morte. Só então comecei a perceber a verdadeira dimensão da tragédia que arruinara as nossas vidas, apesar de continuar a escapar-me a essência do que nos acontecia, espécie de cataclismo desencadeado pelo poder fero e tirano do secretário de Estado Sebastião José Carvalho Melo, verdugo da nossa família. Da sua tirania cruel falei em muitos versos… Deste duro arpão que rasga o peito, monstro que a alma devora sem piedade… Dessa primeira noite em Chelas guardo ainda com inacreditável nitidez a fantasia esperançosa de, na manhã seguinte, acordar em casa, ou nos braços da avó Leonor Távora, que na altura eu ainda não sabia presa. E quando mais tarde uma freira maldosa me contou com todos os pormenores a sua morte bárbara, senti despertar o ódio, sentimento até então meu desconhecido; sentimento confuso mas pertinaz a envenenar-me o sangue, a tentar tomar conta do meu coração de menina assustada. No entanto, os livros, as Luzes e a poesia salvaram-me, ao entornarem a doçura do mel do favo onde o fel e a raiva já haviam começado o seu trabalho devastador.

1758-1768

Chegam ao convento de São Félix por entre o ladrar de cães estremunhados, o metálico ruído das ferraduras dos cavalos, das rodas das carruagens, e o choro do menino pequeno a procurar amparo no ombro da mãe, perdida no alheamento em que ficara, lágrimas deslizando-lhe devagar no rosto, desde que deixara para trás o abrigo da casa. O meu filho!, gritara num apelo aflito no momento em que a separavam de Pedro, agarrado às suas saias. O menino fica!, respondera-lhe o desembargador Eusébio Tavares que já lhe levara o marido, quando à sua ordem os soldados tentavam arrancar dela a criança em pranto. Revolveu-se Leonor Lorena na dor que lhe tolheu o passo, alegando que o menino ficaria no desamparo. E vendo o desembargador hesitar, recorreu a todos os argumentos maternos, voz trémula e comedida embora trespassada pela cruel lâmina da desgraça. Conseguindo desse modo comovê-lo, mal o ouviu dar a ordem no sentido de Pedro seguir com ela, baixara a cabeça e deixara-se levar em silêncio. Os múltiplos sentimentos que na altura não expressara, confessá-los-á mais tarde em cartas clandestinas enviadas ao marido, os soluços cosidos no peito, os dedos incertos a fazerem-lhe tremer a letra mal desenhada no papel grosseiro, obtido à custa dos poucos dinheiros que lhe restavam. Moedas encontradas no fundo de uma bolsa trazida por Leonor de cima da cómoda dos aposentos dos pais, e que ela encobrira depois na roda da capa onde a ama a embrulhara, antes de serem levadas para o carro, à espera diante da entrada, de cortinas fechadas. A menina fique calada pois ninguém lhe está a fazer mal!, ralhou um dos soldados a Maria, que gritava enquanto, agarrada pela cintura, era sentada no banco corrido da carruagem. E formada a escolta pela tropa, o cocheiro fez os cavalos tomarem o caminho dos campos, a coberto da tempestade». In Maria Teresa Horta, As Luzes de Leonor, Publicações dom Quixote, 2011, Prémio D. Dinis I, ISBN 978-972-204-733-3.

Cortesia de PdQuixote/JDACT

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