domingo, 27 de junho de 2021

Fernando Campos. A Casa do Pó. «Meu padre, dizia eu a frei Bonifácio, a quem muito reverenciava, não achais que toda esta pompa e sumptuosidade nada têm a ver com o Senhor Jesus Cristo?»

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Roma... Veneza... Trento

«(…) Não fica, todavia, por aqui o bom acolhimento que a Senhoria faz aos peregrinos. Todos os anos os incorpora na triunfal e soleníssima procissão de Corpus Christi. Este ano de sessenta e dois, depois de escolhida a família franciscana, dirigimo-nos a Veneza a fim de providenciar-lhe a partida. Assistimos então àquela opulentíssima cerimónia, que caiu a quatro de Maio. Tantas e tão momentosas eram as solicitações que me faziam aos sentidos as imagens da cidade em festa que se me torna difícil captar todas as minúcias. Pareciam ganhar vida e ao mesmo tempo insistir comigo, chamar-me, puxar-me pela dobra da manga, ínsinuar-se-me nos ouvidos, no olfato e gritar-me: olha-me! Escuta-me! Aprecia a minha forma, a minha cor, o meu gosto, o meu brilho, o meu som, o meu aroma!...

Linda é Veneza, a dos palácios de fachadas rendilhadas e varandins de nobres e formosas damas, a espelhar-se ondulante nas águas verde-negras de canais por onde vogam gôndolas esbeltas; das finas pontes solícitas, em que suspiram amantes enlaçados; das arcadas debruando praças; das torres altaneiras que espreitam o Adriático e as ilhas dispersas da laguna; das líquidas ruas angustiadas entre paredes lavradas; dos sinos que ressoam e tangem pratas na atmosfera húmida; do suave marulhar das águas nas noites calmas de luar! Mas em festa atavia-se até ao pormenor requintado, até à orquestração delirante das formas. Paganiza-se, paganiza a festa litúrgica que, por excelência, não deverá de ser paganizável. Ao meu espírito de franciscano é uma demonstração de fausto e de riqueza que ofende a humildade e a pobreza cristã, não obstante a argumentação de frei Bonifácio procurando convencer-me do contrário e até da necessidade da pompa para dignificar a Igreja e os seus ministros.

Meu padre, dizia eu a frei Bonifácio, a quem muito reverenciava, não achais que toda esta pompa e sumptuosidade nada têm a ver com o Senhor Jesus Cristo? O meu pensamento está-me dizendo que toda esta luxúria, este fausto, esta opulência e ostentação exterior de riqueza desviam as almas do verdadeiro espírito de cerimónia tão santa. A Igreja, visse o seu bom Pantaleão, tinha necessidade de dar de si uma alta imagem, à altura se possível, e oxalá pudesse!, da majestade divina.

Cristo era pobre ..., e era Deus... O anel que o imperador, o rei, o príncipe, oferecia à desposada não era, não podia ser, de modo algum, igual àquele outro, de ouropel ou latão, que o mesteiral, o camponês, entregava à namorada. Cristo era o esposo dos esposos. Que espanto que a Igreja, sua desposada, fosse procurar aos mais remotos confins do mundo a jóia mais rara, o marfim mais branco, o mármore mais puro? Nenhum ouro, nenhuma prata podiam ser bastantes a celebrar a majestade das majestades.

Nosso padre São Francisco não pensava assim... Nosso padre São Francisco comporia um hino em que cantariam os louvores do Criador a safira de azul mais imaculado, o rubi de vermelho mais sanguíneo, grande e invulgar, o topázio cor de laranja, a verde esmeralda, o peridoto, o diamante, a opala, o ónix, a ágata, a cornalina, restituindo, devolvendo assim a Deus estas maravilhosas obras de Deus. A argumentação de frei Bonifácio apanhava-me como em ratoeira construída por mim próprio. Calava-me, mal convencido no plano do raciocínio, mas agradado da ideia, que tão bem me quadrava». In Fernando Campos, A Casa do Pó, Difel, 1986, Editora Objectiva, Alfaguara, 2012, ISBN 978-989-672-114-5.

Cortesia de Difel/Alfaguara/JDACT

A Arte da Escrita, Fernando Campos, JDACT, Literatura,