Roma... Veneza... Trento
«(…) Não fica, todavia, por aqui
o bom acolhimento que a Senhoria faz aos peregrinos. Todos os anos os incorpora
na triunfal e soleníssima procissão de Corpus Christi. Este ano de sessenta e
dois, depois de escolhida a família franciscana, dirigimo-nos a Veneza a fim de
providenciar-lhe a partida. Assistimos então àquela opulentíssima cerimónia,
que caiu a quatro de Maio. Tantas e tão momentosas eram as solicitações que me
faziam aos sentidos as imagens da cidade em festa que se me torna difícil
captar todas as minúcias. Pareciam ganhar vida e ao mesmo tempo insistir
comigo, chamar-me, puxar-me pela dobra da manga, ínsinuar-se-me nos ouvidos, no
olfato e gritar-me: olha-me! Escuta-me! Aprecia a minha forma, a minha cor, o
meu gosto, o meu brilho, o meu som, o meu aroma!...
Linda é Veneza, a dos palácios de
fachadas rendilhadas e varandins de nobres e formosas damas, a espelhar-se
ondulante nas águas verde-negras de canais por onde vogam gôndolas esbeltas;
das finas pontes solícitas, em que suspiram amantes enlaçados; das arcadas
debruando praças; das torres altaneiras que espreitam o Adriático e as ilhas
dispersas da laguna; das líquidas ruas angustiadas entre paredes lavradas; dos
sinos que ressoam e tangem pratas na atmosfera húmida; do suave marulhar das
águas nas noites calmas de luar! Mas em festa atavia-se até ao pormenor
requintado, até à orquestração delirante das formas. Paganiza-se, paganiza a
festa litúrgica que, por excelência, não deverá de ser paganizável. Ao meu
espírito de franciscano é uma demonstração de fausto e de riqueza que ofende a
humildade e a pobreza cristã, não obstante a argumentação de frei Bonifácio
procurando convencer-me do contrário e até da necessidade da pompa para
dignificar a Igreja e os seus ministros.
Meu padre, dizia eu a frei Bonifácio,
a quem muito reverenciava, não achais que toda esta pompa e sumptuosidade nada
têm a ver com o Senhor Jesus Cristo? O meu pensamento está-me dizendo que toda
esta luxúria, este fausto, esta opulência e ostentação exterior de riqueza
desviam as almas do verdadeiro espírito de cerimónia tão santa. A Igreja, visse
o seu bom Pantaleão, tinha necessidade de dar de si uma alta imagem, à altura
se possível, e oxalá pudesse!, da majestade divina.
Cristo era pobre ..., e era
Deus... O anel que o imperador, o rei, o príncipe, oferecia à desposada não
era, não podia ser, de modo algum, igual àquele outro, de ouropel ou latão, que
o mesteiral, o camponês, entregava à namorada. Cristo era o esposo dos esposos.
Que espanto que a Igreja, sua desposada, fosse procurar aos mais remotos
confins do mundo a jóia mais rara, o marfim mais branco, o mármore mais puro?
Nenhum ouro, nenhuma prata podiam ser bastantes a celebrar a majestade das
majestades.
Nosso
padre São Francisco não pensava assim... Nosso padre São Francisco comporia um
hino em que cantariam os louvores do Criador a safira de azul mais imaculado, o
rubi de vermelho mais sanguíneo, grande e invulgar, o topázio cor de laranja, a
verde esmeralda, o peridoto, o diamante, a opala, o ónix, a ágata, a cornalina,
restituindo, devolvendo assim a Deus estas maravilhosas obras de Deus. A
argumentação de frei Bonifácio apanhava-me como em ratoeira construída por mim
próprio. Calava-me, mal convencido no plano do raciocínio, mas agradado da ideia,
que tão bem me quadrava». In Fernando Campos, A Casa do Pó, Difel,
1986, Editora Objectiva, Alfaguara, 2012, ISBN 978-989-672-114-5.
Cortesia de Difel/Alfaguara/JDACT