Cortesia de paulocampos
«Eram próprios da época os torneios; desde 1066, em que Godofredo de Pailly os idealizou, serviam eles de bom aprendizado nas armas aos mancebos que tinham por destino o combater. Assaltantes e manejadores giravam nas liças; altivos em suas armaduras, correctos em seus meneios, fuzilando raios de espadas e estrondeando em choques violentíssimos, com seus pendões ao vento e seus olhares na dama dos pensamentos, velavam a rudeza dos seus feitos com um sendal de poesia: o culto aryano do belo e do frágil, personificado na mulher. Nesses torneios, que se repetiam nas solenidades de mais importância, educaram-se também os Infantes de Avis.
A época era ainda de Cavalarias; havia pouco tempo que aos nove «preux» já consagrados:
- Machabeu,
- Josué,
- David,
- Alexandre Magno,
- Heitor,
- Júlio César,
- Karl, o Magno,
- Godofredo de Bouillon e Beltram, se acrescentara um décimo, Duguesclin.
A Cavalaria ainda era um sacerdócio da guerra; aureolava-se com a generosidade e as suas armas deviam defender todo o que se afundasse na tristeza do desamparo. O espírito cavalheiresco caía no fervido tumultuar das paixões como uma aspersão de água benta na fronte de um réprobo; era como uma aragem que descesse do céu a varrer os miasmas que ao de cima de um pântano se alastravam, nas almas. O seu móbil não seria todo ideal, contudo ele foi um protesto reabilitador da Humanidade. E nesse espírito que vem acolher-se as correntes de tradições indo-europeias, que se transfundem nas almas, de geração a geração, como o sangue de organismo a organismo; e essas tradições combinadas com a Ideia Cristã, que por assim dizer criou uma nova raça humana, desenvolvem-se gradualmente nas Epopeias. Aquelas começam no mar dos povos a surgir assim como, longe da costa, afloram à superfície do Oceano as espumas precursoras das vagas, que se formam depois e rolam na praia com estampido formidável.
Pois da mesma forma, nos tempos medievos, uma ou outra palavra revelava, aqui e ali, o assunto que de longe vinha na asa da tradição; acolhia-o qualquer espírito que o desenvolvia em uma cantilena ou «chacone», assimilava-se esta com outras idênticas, enleavam-se todas como ramos de florestas ou como raízes vigorosas, e essas cantilenas, sons isolados, constituíam, enlaçando-se, as «canções de gesta».
Cortesia de wikipedia
Assim, a «Busca do Santo Graal», com todas as suas aspirações religiosas e todo o seu ideal de pureza:
- Merlim, o encantador, o magico, uma personificação do dualismo oriental;
- Artur, a valentia de um rei como que sintetizando num símbolo a valentia de uma geração;
- e todos os mais romances do ciclo dos da Távola Redonda, fragmentos assimiláveis a que Roberto Wace, Boron e Luc du Gast deram tipo, trazem em si o mesmo pensamento que inspirou os «slohas» ou dísticos das «Itihasas» sagradas dos indianos, isto e, a luta do Bem e do Mal, luta sempre viva e sempre evidente.
O ideal de Justiça esboçado nessas concepções remotas do espírito humano, torna-se mais nítido nas produções que a aspiração cavalheiresca assimilara. O Bem tenta suplantar o Mal; a Pureza faz por dissipar as manchas da Corrupção; mas, embora essas tradições lendárias se combinem com o Cristianismo, a felicidade, contudo, não fica consistindo na suavidade dos prazeres simples, na paz e no amor universal, mas sim ainda no gozo cruel dos combates sem tréguas.
- a «canção de gesta de Rolando» é vibrante como um clarim de guerra;
- a «Durendal», a boa espada do herói, sulca como um arado vasta gleba de muçulmanos; «Ganelon» é a personificação do Mal;
- «Alda, o eterno feminino»;
- o cunho ariano de Justiça lá vem impresso nessa primeira compilação de cantilenas, e também o Cristianismo vai chamando a si e absorvendo a composição, tornando-a uma epopeia sua.
Na corte de D. João I liam-se os livros de Cavalaria. O mesmo rei os tinha em sua recâmara, formando um núcleo de biblioteca. Não era inteiramente desafeiçoado às letras o bastardo de D. Pedro I. Gostava de ler em serão com os da corte «O Regimento de Príncipes», de Gil de Roma; compilava ele mesmo as regras de «Monteria» em livro; tinha a «História Geral de Espanha», de Afonso, o Sábio; os «Evangelhos»; «Bíblias»; livros de orações; o «Manual da Cetraria»; «A Confissão do Amante», de John Gower; o livro de «Agricultura» (talvez o do árabe Abu-Zaccaria-Iahia-Aben-Mohamed ben-Ahmed-Ebu-el-Awan), o de «Bartholo», e o das «Partidas», bem como os «Comentários jurídicos» de Pino de Cistoia, as «Trovas» de D. Diniz e o livro da «Demanda do Santo Graal». Este último, principalmente, era o predilecto, como livro cavalheiresco que era. As lendas bretãs, vindas com a aliança e convivência inglesas, achavam eco e simpatia na corte de Portugal. O próprio rei comparava-se a Artur, o legendário, e aos seus bons cavaleiros chamava ele pelos nomes dos leais da Távola Redonda.
Cortesia de guerradarestauracao
O Condestável, todo espiritual, queria desde a adolescência ser puro como Galaaz. D. Filipa rejubilava-se com ouvir essas lendas, cantadas ou narradas nas salas do paço das Alcáçovas ou sob os castanheiros frondosos de Sintra; tinha assim uma evocação do seu país natal. Os Infantes escutavam, atentos, e queriam imitar os heróis. As donas e donzelas, sentadas em torno à rainha, ouviam também, sorridentes e interessadas, aquelas histórias de amores. Todos tomavam nomes de heróis e de heroínas:
- Artur e Tristão,
- Iseult e Oriana,
- Percival e Lançarote,
- Alda e Briolanja.
A «canção de gesta» ia para uma nova fase da evolução das tradições, resolvendo-se na prosa das novelas de «Amadis». Vasco de Lobeira foi um dos primeiros a historiar as aventuras desse «donzel do mar», filho de Perion e de Belizena.
E a leitura desses livros de Cavalaria ia suplantando os cantares trovadorescos da Provença. As cantigas de D. Diniz iam-se obliterando, na casa de D. João I; a numerosa corte do rei poeta desaparecera sem sucessores quase; ainda despertava alguma atenção a poesia galeciana de Macias e Villansandino; mas os livros de Cavalaria absorviam todos os espíritos, e talvez se ligasse mais interesse então a qualquer «goliardo» ou estudante vagabundo, sucessor de Walter Map, cantando um «chacone» fantástico, do que ao mais lírico trovador que viesse ali nas salas soluçar queixumes, ao som do alaúde. No entanto a poesia lírica não se extinguia, transformava-se. Dois dos filhos do Rei, D. Duarte e D. Pedro, cultivaram-na. O primeiro trovou à moda antiga, mas como era mais erudito do que poeta, não foi esse o género literário que mais se tornou do seu agrado e ate das suas trovas originais nenhuma conseguiu a posteridade ler. O segundo foi um poeta do tempo, um alegórico à maneira de Juan de Mena; poeta enfim, próprio do momento histórico dos primeiros alvores da Renascença clássica.
D. Henrique, esse, não tinha vocação poética; o seu espírito não adejava em devaneios de lirismo; ia-se tornando positivo e grave, calculista e reservado e seco. O pai idolatrava-o; era o filho que mais se parecia com ele, no aspecto e no carácter. E já ao sair da adolescência os três mais velhos dos Infantes de Avis iam revelando as linhas características intelectuais, que os distinguiriam:
- D. Duarte um humanista erudito;
- D. Pedro, um filósofo e politico;
- D. Henrique, um cosmógrafo e economista (19).
In Alfredo Alves, D. Henrique o Infante, Typografia do Commercio do Porto, 1894G 286, H5A53, Porto.
Cortesia de Typografia do Commercio do Porto, 1894/JDACT