segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Oliveira Martins: Os Filhos de D. João I. Parte IV. «Ao lado do rei, os infantes, cumprindo-lhe rapidamente as decisões, suprimindo de caso pensado os detalhes irritantes ou enfadonhos dos negócios, usavam com seu pai de todas as artes legítimas para lhe evitar o cansaço e para lhe ressalvar a susceptibilidade que aos velhos cresce com os anos»


Cortesia de paulocampos e feriasparatodos

A Corte e o Conselho
«Dos legítimos, os três mais velhos, criados juntos, educados juntos, quase da mesma idade, tinham crescido como vergonteas de uma só arvore, alentados pela mesma seiva, unidos num único amor, unânimes no respeito inexcedível pelos pais, ligados entre si por uma amizade estreme. Mas, não há na natureza dois seres inteiramente iguais, como ramos de uma mesma árvore, os filhos de Avis, à medida que cresciam, divergiam bracejando, cada qual segundo o seu feitio, para sua direcção diferente. Já D. Duarte mostrava aquela virtuosa abnegação e a passividade que o matou. Já D. Pedro acusava a inteireza de pensamento e as suas inclinações de filósofo, procurando, desejando sempre subordinar os seus actos a regras, e indagando as causas morais e materiais das coisas. Já D. Henrique, finalmente, menos escrupuloso do que o herdeiro da coroa, cuja virtude tinha o quer que fosse doentio, ou sequer fraco, e menos integro do que o seu antecessor, mostrava a força de um homem de acção, obedecendo cegamente a impulsos que não contraria, ainda quando a razão e a consciência lhe murmurem que pode errar. Dos três, o mais humano era incontestavelmente D. Pedro. D. Duarte tinha na sua virtude o quer que é enfermiço e feminino. D. Henrique, votando-se à castidade, por obediência aos planos que lhe enchiam o cérebro, sonhando cavalarias magníficas e empresas estupendas, de um género inteiramente novo, denunciava um temperamento de herói, com a secura, com a dureza, com a desumanidade que as ideias fixas, condição do heroísmo, impõem aos homens.

Fora ele quem insinuara a João Afonso de Azambuja a ideia de Ceuta? Talvez fosse. O facto é que no seu pensamento a aquisição d'essa praça ganha uma importância nova.
A continuação da reconquista para além mar não era apenas um desforço contra os mouros, nem a vingança da lendária traição do conde Juliano: era abrir a Portugal as portas doiradas do Oriente vago e misterioso, onde havia cristãos com efeito, os cristãos do Preste João, mas onde havia também as especiarias, os tecidos preciosos, o oiro fulvo, e tudo o mais que as caravanas traziam através do deserto, desde o mar Roxo, pelo Egipto, pela Tripolitana e por Argel, até Marrocos, de que Ceuta era a Nova York, e Fez a capital, como Washington, uma corte apenas.

Cortesia de paulocampos

Já talvez agora, no espírito quase fenício do infante, se desenhassem estes alinhamentos da cavalaria nova em que Portugal ia arrolar-se, confundindo num mesmo abraço a fé, recebida do passado, e o lucro, futura religião dos europeus assim que puderam avassalar e explorar o mundo inteiro.
A medida que os filhos foram crescendo, D. João I associou-os ao governo. Formavam o seu conselho de estado. Assembleia única era a desses quatro homens ligados pelos vínculos do sangue, unidos pela mesma fé e por um amor igual, presidindo ao governo de um povo que os abraçava a todos numa adoração comum! Com a reserva e o respeito de filhos, os homens novos, recebendo mais vivas as impressões de fora, modificavam os caprichos que a idade, os hábitos, porventura a doença, levantavam no espírito do pai. A família, na mais bela expressão do seu valor social, realizava assim a abstracção da imortalidade com o facto da sucessão das gerações transmitindo de uma a outra uma ideia, um pensamento, uma vontade. A alma dos pais, ao despedir-se da terra, renascia com asas novas no corpo dos filhos que entravam em cheio na arena da vida.
Ao lado do rei, os infantes, cumprindo-lhe rapidamente as decisões, suprimindo de caso pensado os detalhes irritantes ou enfadonhos dos negócios, usavam com seu pai de todas as artes legítimas para lhe evitar o cansaço e para lhe ressalvar a susceptibilidade que aos velhos cresce com os anos. E o inconsciente, acusando a debilitação da energia vital. Queriam que o governo fosse para ele um prazer. Deixavam-lhe plena liberdade de fixar os dias de desembargo e a ordem dos negócios; mas faziam-no com tanta discrição que o rei, sendo de facto governado pelos filhos, se acreditava ainda nos tempos em que mandava, na plena acepção da palavra.
«Tal maneira, diz D. Duarte, ao contar estas coisas, não se pôde bem ter com todos os senhores, nem se guardar em todas as amizades, que escrito é que amizade perfeita não pôde ser senão entre pessoas virtuosas, de um propósito querer e não querer nas coisas principais, que hajam entendimento e vontades concordáveis fundados em muita lealdade, de grandes, largos e bons corações».

Cortesia de almapaixonada

Aos largos e bons corações de seus filhos confiou pois D. João I a ideia da conquista de Ceuta, enumerando os obstáculos que se opunham à sua realização. Em primeiro lugar, faltava dinheiro: não o tinha o tesouro. Como havê-lo? Por meio de pedidos, ou impostos? Isso traria um escândalo enorme, e seria cruel para o povo que tanto sofrera com as guerras castelhanas; depois, seria desvendar um plano cujo êxito estava principalmente na pontualidade do segredo. Em segundo lugar, não havia esquadra capaz de levar o exército a Ceuta. Em terceiro lugar, faltavam homens. Faltava tudo. Parecia que o rei de propósito exagerava as dificuldades, para afastar os filhos da empresa.

Em quarto lugar, ainda que vença, «o filhamento (tomada) desta cidade, continuava D. João I, me pôde fazer maior dano que proveito». O reino de Granada parecia-lhe mais fácil de conquistar; e se o não conquistássemos, Castela o conquistaria. Que proveito tinha ele em que Granada caísse em poder dos castelhanos? Se tomo Ceuta, concluía, com certeza os castelhanos tomam Granada; o que era um mal evidente, porque destruía o equilíbrio internacional na Espanha, aumentando o poder dos nossos inimigos naturais. Em quinto lugar, finalmente, indo bolir com os mouros de Marrocos, expomos o nosso Algarve aos seus contínuos assaltos; e além disso fica-nos fechada a porta do Mediterrâneo, onde os navios portugueses vão de Lisboa vender o vinho, o azeite e as frutas. Fazia-se um grande comércio marítimo com os portos mediterrâneos.

Depois do rei expor as suas dúvidas, os infantes disseram que não eram necessários pedidos : obter-se-íam os recursos por escambos (empréstimos) com os mercadores do reino; em todo o caso bastava aplicar à guerra o que se havia de gastar com as festas projectadas para os armar cavaleiros. Com relação à falta de navios, que era real, mandavam-se vir fretados dos portos da Galiza, da Biscaya, de França e da Alemanha: considerasse-se o número de navios que vinham ao frete do sal, do azeite e dos vinhos.
Por outro lado bastava fretar os navios para com eles vir gente. E, além disso, não era exacto que faltasse gente: havia, e muita, no reino, e estava-se em paz com Castela.
Convenceu-se facilmente o pai acerca dos três primeiros pontos; mas nos dois últimos houve dúvidas. A ideia de uma empresa marítima devia assustar na velhice o rei que levara toda a vida em correrias e cavalgadas, costumado a batalhar e vencer em terra. Simpatizava mais, e compreende-se, com a empresa de Granada, que seria, porém, uma loucura, já por importar a guerra com Castela, já porque a própria Castela só depois de unida ao Aragão pôde, em 1492, destruir esse último baluarte do império muçulmano da Espanha. Não é na proximidade dos sessenta anos que facilmente se aceitam ideias novas: mais vezes se praticam loucuras sob a inspiração das antigas (23)». In Joaquim Pedro Oliveira Martins, Os Filhos de D. João I, Casa Editora Antiga Livraria Chardron, Lugan & Genelioux, Successores, Porto. Lisboa, Imprensa Nacional, MDCCCXCI, Library University of Toronto, Oct 6 1967 de 3 1761 042963371.

Cortesia de J. Oliveira Martins/Paulo Campos/U. de Toronto/JDACT