Cortesia de tribodejacob e vdrpatricewordpress
«Certas ideias de Espinosa fazem parte da cultura contemporânea, mas, tanto quanto saiba, Espinosa não é referência corrente nas neurociências. Esta ausência merece um comentário. Espinosa é um pensador bem mais famoso do que conhecido. Por vezes aparece-nos como se viesse do nada, em esplendor solitário e inexplicável, embora esta impressão seja falsa. Apesar da sua originalidade, Espinosa faz parte integrante do seu meio intelectual.
Por vezes desaparece, de súbito, sem continuidade, outra falsa impressão dado que a essência de algumas das propostas proibidas se encontra regularmente no século que se seguiu à sua morte. Uma das explicações para toda esta celebridade desconhecida tem a ver com o escândalo que Espinosa causou no seu próprio tempo. As suas palavras hereges foram banidas décadas a fio e com raras excepções eram citadas para o atacar e não para o defender. A continuidade de reconhecimento intelectual que normalmente mantém o trabalho de um pensador foi assim interrompida e várias ideias de Espinosa foram usadas sem atribuição. Este estado de coisas, contudo, não chega para explicar porque é que Espinosa continuou a ganhar fama mas permaneceu desconhecido, uma vez que Goethe e Wordsworth se tornaram seus defensores públicos .Talvez que a explicação mais directa seja que Espinosa não é fácil de conhecer.
A dificuldade começa com o problema de que não há um só Espinosa, mas vários, pelo menos quatro, pelas minhas contas. O primeiro é o Espinosa acessível, o radical erudito que discorda das igrejas do seu tempo, apresenta uma nova concepção de Deus e propõe um caminho novo para a salvação humana. O Espinosa seguinte é o arquitecto político, o pensador que descreve as características de um estado democrático ideal, habitado por cidadãos responsáveis e felizes. O terceiro é o menos acessível da colecção: o filósofo que usa factos científicos, um método de demonstração geométrico e a intuição para formular uma concepção do universo e dos seus seres humanos.
Cortesia de europaamerica
Reconhecer estes três Espinosas e a teia das suas dependências chega para sugerir a grande complexidade de Espinosa. Mas o problema não fica por aí, porque há um quarto Espinosa, o protobiologista, o pensador da vida escondido por detrás de numerosas proposições, axiomas, provas, lemas e escólios. Dado que o progresso da ciência das emoções e dos sentimentos se coaduna com as propostas que Espinosa começou a articular, a segunda finalidade deste livro é estabelecer a ligação entre este Espinosa menos conhecido e a neurobiologia de hoje que lhe corresponde. O livro não aborda o seu pensamento fora dos aspectos que me parecem pertinentes para a biologia. O alvo é bem mais modesto. Através da história, a filosofia tem prefigurado a ciência e julgo que a ciência deve reconhecer esse esforço histórico, sempre que possível e devido, o que é por certo o caso com Espinosa.
À Procura de Espinosa
Espinosa é pertinente para a neurobiologia apesar das suas reflexões sobre a mente humana não terem origem numa prática científica, mas sim numa preocupação geral com e condição humana. A preocupação suprema de Espinosa era a relação entre os seres humanos e a natureza. Espinosa tentou clarificar essa relação de forma a propor métodos eficazes para a salvação humana. Alguns desses métodos eram pessoais, sob o controlo do indivíduo, mas outros dependiam da ajuda que certas formas de organização social e política davam ao indivíduo. O pensamento de Espinosa descende do de Aristóteles, mas os alicerces biológicos são mais firmes, como seria de esperar. Espinosa parece ter entrevisto uma relação entre a felicidade pessoal e colectiva, por um lado, e a salvação humana e a estrutura do estado, por outro, muito antes de John Stuart Mill. Pelo menos no que diz respeito às consequências sociais do seu pensamento, Espinosa é hoje regularmente reconhecido.
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Espinosa prescreveu o estado democrático ideal, marcado pela liberdade da palavra, «cada um pense o que quiser e diga o que pensa», pela separação prática do estado e da religião, e por um contrato social generoso que promovesse o bem estar dos cidadãos e a harmonia do governo. Espinosa prescreveu tudo isto mais de um século antes da Declaração da Independência Americana e da primeira emenda da Constituição Americana.
Quem é, então, este homem que pensava sobre a mente e corpo de um modo não só profundamente diferente da maior parte dos seus contemporâneos mas também notavelmente moderno? Quais as circunstâncias que produziram um espírito tão rebelde? Para tentar responder a estas perguntas precisamos de reflectir sobre ainda mais um Espinosa, o homem por detrás de três nomes próprios, Bento, Baruch, Benedictus, uma pessoa ao mesmo tempo corajosa e cautelosa, inflexível e acomodatícia, arrogante e modesta, admirável e irritante, próxima da matéria concreta e observável e, ao mesmo tempo, abertamente espiritual. Os sentimentos pessoais de Espinosa nunca são revelados directamente no estilo da sua prosa e apenas podem ser adivinhados, aqui e além, a partir de indícios esparsos.
Quase sem me dar conta, comecei à procura da pessoa por detrás da estranheza do trabalho. Queria apenas encontrar-me com Espinosa na minha imaginação, conversar um pouco, pedir-lhe para autografar a Ética. Escrever sobre a minha procura de Espinosa e sobre a história da sua vida passou a ser a terceira finalidade deste livro.
Espinosa nasceu na próspera cidade de Amesterdão em 1632, no meio da Idade de Ouro da Holanda. Nesse mesmo ano, perto da casa da família Espinosa, um jovem Rembrandt de 23 anos estava a pintar «A Lição de Anatomia do Doutor Tulp», o quadro que iniciou a sua fama.
Bento foi o nome que lhe foi dado quando nasceu pelos seus pais Miguel e Hana Debora, judeus sefarditas portugueses que se tinham instalado em Amesterdão. Na sinagoga e entre os amigos, Espinosa era conhecido por Baruch, o nome que sempre o acompanhou na meninice e na adolescência passadas nesta comunidade afluente de mercadores e estudiosos judeus». In António Damásio, Ao Encontro de Espinosa, As Emoções Sociais e a Neurologia do Sentir, Publicações Europa-América, Fórum da Ciência, 2003, ISBN: 972-1-05229-9.
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