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Um buraco no chão.
«Todos, profissionais e amadores, se mantiveram vigilantes nos vários centros da catástrofe, palavra sujeita a confirmação, até se constiparem em directo. Foram os primeiros a mostrar à luz do dia as ruas, os estabelecimentos a enxaguar, a brigada de colectores da câmara municipal, homens exaustos pela luta com as sarjetas, de chávena de café na mão, mais as vítimas friorentas a exigirem subsídios para a ruína, ou a explicarem que aquela chuvada parecia o fim do mundo e o aquecimento global juntos, mas a vida continua.
Por exemplo, no café-snack O Dedé, ao Boqueirão dos Anjos, o dono ouviu como que uns sinos de vidro, olhou e viu as suas grades de minis a fugia parecia aquelas jangadas de imigrantes a escaparem para um país novo, arriscando tudo na maré, disse o senhor Delmiro, o Galego, que não bebia há vinte anos por não poder, mas abriu a única cerveja que ficou e engoliu-a de pequeno-almoço, numa alegria trágica, numa vez sem exemplo.
No geral, Lisboa acordava sem novas situações de pânico, sem cadáveres a boiar, só esqueletos de guarda-chuva, tambores de máquina de lavar ferrugentos) gatos vadios enrolados nas silvas. Falava-se em milagre e em quase milagre.
A manhã seguinte, no entanto, guardava um mistério. Nas costas do Parque Eduardo VII, frente à Igreja de São Sebastião da Pedreira, do outro lado dos grandes armazéns espanhóis, abrira-se um buraco enorme.
Um fosso no chão de Lisboa, do tamanho duma banheira grande - um alçapão de palco, daqueles por onde desaparecem as partenaires dos mágicos -, disse um taxista que não conseguia fazer pegar o carro que já dera a volta ao conta-quilómerros, pelo menos milhão e meio o meu carro fez, fui à Lua e voltei duas vezes, duas vezes sim, fiz as contas e nunca troquei de motor, disse o homem coçando a cabeça, mas este buracão na estrada parece truque de ilusionismo. A ideia ganhou força e espalhou-se com a segunda e terrível descoberta.
O Comandante operacional dos sapadores bombeiros falava da sorte que era ninguém ter caído lá dentro, como às vezes acontece a carros e até autocarros em Lisboa. Não se esqueçam que isso sucede quando chove desta maneira louca, é uma cidade toda mal feita no solo e subsolo, cheia de ribeiras domesticadas com canos gigantes, que não está nem nunca esteve pronta para precipitações, brincou ele, felizmente até agora os veículos automóveis ficaram sempre entalados, o rabo de fora, por serem demasiado grandes para a fenda respectiva.
Os sapadores vedaram o sítio com fita plástica. Ao fim da manhã, desceram uma gambiarra e, no fundo do buraco, a alguns metros de profundidade, deram com um cano velho de tijoleira, bastante alto e largo. Estava rebentado pela implosão da calçada de granito, com paralelepípedos cinzentos à entrada, e seguia pelas entranhas de Lisboa, descendo no escuro pelo que parecia, para baixo ou na direcção do Parque Eduardo VII. Houve uma exclamação geral, no bordo da cratera.
Uma saída! Uma entrada! Um cano secreto?
Em princípio, um boqueirão antigo da cidade subterrânea, disse o Comandante, que aumentara o pescoço como um réptil. E acrescentou, mantendo o espírito cómico, que o desgraçado dum peão que tivesse cardo ali durante a chuvada, na altura do afundamento do chão, estaria perdido, afogando-se sabe-se lá onde, arrastado pelas águas a caminho do Tejo talvez, o destino da água em Lisboa, por causa da gravidade.
Subiram a gambiarra e alguém gritou e apontou a meio do buraco. Era um pequeno socalco de areia dourada, no sedimento de obras antigas. Via-se qualquer coisa, um resto arqueológico, mas de cores vivas, recentes. Ali, ali, o que é aquilo?! Espetados na terra húmida estavam a bengala de um cego e um sapato de criança». In Rui Cardoso Martins, «Deixem Passar o Homem Invisível», Publicações Dom Quixote 2010, ISBN 978-972-20-3828-7.
Com a amizade da Isabel, Ana e João.
Cortesia de Dom Quixote/JDACT