terça-feira, 9 de agosto de 2011

Leituras. Parte X: Deixem Passar o Homem Invisível. «Nas zonas mais altas foi menos grave, mas centenas de comerciantes ficaram com dores nas costas, estiramentos e mesmo hérnias discais por súbito abuso de pá, esfregona e balde. Outros sofreram incalculáveis prejuízos de lama no mobiliário, nos electrodomésticos, nas carnes congeladas…»

Cortesia de alcatraopenas

Um buraco no chão.
«Nas ruas ouvia-se um vómito de pedra, um enjoo hidráulico, canos deitavam água pela boca fora, baratas e excrementos, que outros canos voltavam a engolir, como numa gigantesca festa decadente. A água parecia confusa com a sua própria quantidade, um único corpo vivo a cobrir a terra que o rejeitava, e tanto enfiava um braço viscoso no primeiro buraco como usava outro para explodir um «geyser» de esgoto, grosso e gelado.
Nas zonas mais altas foi menos grave, mas centenas de comerciantes ficaram com dores nas costas, estiramentos e mesmo hérnias discais por súbito abuso de pá, esfregona e balde. Outros sofreram incalculáveis prejuízos de lama no mobiliário, nos electrodomésticos, nas carnes congeladas, nos pacotes à deriva, nos linóleos descolados dos pisos e nos balcões novos de alumínio.


Cortesia de ionline e jdact

Em certas caves de restaurante, soube-se mais arde, houve batata que grelou irremediavelmente, da noite para o dia a batata nova fez-se velha, e pouco restou para servir aos clientes dessas sacas, só dava para fazer sopa.
Os bombeiros não têm mãos a medir para acorrer a todos os pedidos de socorro, aos milhares de inundações, e as pessoas são aconselhadas a não sair de casa em caso algum, quem tem água potável que a poupe, subam aos andares superiores, apelou a Protecção Civil.
Quem perdeu o telhado, pelo contrário, desça com precaução até um nível médio que considere seguro, livre das rajadas.
Um prédio erguido em cima do caneiro de Odivelas abanou, cheirando a gás e a curto-circuito, e quinze famílias foram evacuadas por terem escolhido mal o sítio para viver.

Cortesia de a23online

Fugiram a chorar na imundície, velhos e bebés em lágrimas, mais água despejada na rua. Felizmente, e contra o que toda a gente receava, ao fim dumas horas a Protecção Civil anunciou não haver vítimas mortais a registar, por enquanto, ou a denúncia de qualquer desaparecimento, por enquanto, repetiu.
Tudo estava a acabar bem: a meio da madrugada, as rádios e televisões transmitiam o retrocesso das águas, e só mostravam, com o foco luminoso da câmara, alguns cães nadadores a passar, agarrados com os dentes a ramagens, mas, explicou uma testemunha, ainda há uma hora a água me chegaria ao pescoço, aqui mesmo onde estou. O Instituto de Meteorologia disse que as nuvens começavam a desaparecer, umas seguiram o caminho do mar, outras pareciam ter-se gasto ao tentar seguir para norte e para leste e inundar o resto do território. Boas perspectivas abriam-se para a manhã, talvez o próprio Sol.
Esperava-se o regresso do céu azul de Portugal. Os repórteres admitiram dormir uns minutos no carro de exteriores, por falta de novidades mas, por outro lado, se calhar era melhor continuar como toda a gente, em êxtase profissional. Usaram palavras como borbotões, bueiros e gorgolejo. As melhores imagens começavam a ser negociadas por cidadãos-jornalistas, e os seus telemóveis, numa enxurrada de envios para as televisões. Eram de fraca qualidade mas tinham a característica, muito apreciada, do homem no centro do perigo». In Rui Cardoso Martins, «Deixem Passar o Homem Invisível», Publicações Dom Quixote 2010, ISBN 978-972-20-3828-7.

(Continua).
Com a amizade da Isabel, Ana e João.

Cortesia de Dom Quixote/JDACT