terça-feira, 23 de agosto de 2011

Sebastião Cruz. Doutoramento Solene. Petição de Grau: «Magnífico Reitor. Se é bastante esta minha promessa solene de dedicação à Ciência e à Universidade este, o meu «sacramentum militiae», acompanhada da garantia das testemunhas invocadas e das pessoas aqui presentes, a quem manifesto o mais sincero e vivo reconhecimento, dignai-vos benevolamente conceder-me as insígnias doutorais da gloriosa Faculdade de Direito de Coimbra»



(1918-1996)
Santiago de Bougado, Trofa
Cortesia de uc

«Jurista português, professor catedrático da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra e sacerdote da Arquidiocese de Braga com fama de notável orador sacro, licenciou-se na Faculdade de Direito Canónico da Pontifícia Universidade de Salamanca e doutorou-se na mesma faculdade. Em 1954 concluiu a licenciatura na Faculdade de Direito de Coimbra onde se doutorou em Ciências Histórico-Jurídicas em 1962, dele afirmando o Prof. Braga da Cruz que «finalmente, a Faculdade de Direito de Coimbra tinha um romanista». Desenvolveu trabalhos de investigação com os mais conceituados romanistas: Prof. Álvaro D'Ors, Prof. Wolfgang Kunkel, Prof. Emilio Betti, Prof. Hermann, Prof. Peteschow, Prof. Francesco Calasso, entre outros. Leccionou Direito Romano na Faculdade de Direito de Coimbra desde Janeiro de 1963 e Direito Concordatário Português a partir de 1969. Foi também professor catedrático da Universidade Católica Portuguesa. De entre as suas obras pode-se destacar o Direito Romano».

Magnífico Cancelário-Reitor:
Neste momento solene, apresento-me respeitosamente perante Vós à semelhança do antigo soldado da Velha Roma, quando ao ingressar na legião nobre do exército prestava aquele juramento mágico denominado «sacrarnenturn militiae», que era decisivo para a sua vida.
A analogia é clara.
Poderia até julgar-se estarmos a assistir à reprodução de uma cena histórica de há vinte e cinco séculos, embora com algumas variantes, e não à vivência dum fenómeno próprio do nosso tempo. As grandes cerimónias actuais, segundo as investigações dos especialistas, nomeadamente de Auerbach e de Leo Spitzer, têm quase sempre uma origem primitiva e permaneceram invariáveis durante muitos séculos. O tempo não exerceu sobre elas uma acção corrosiva. Cada civilização deu-lhes apenas uma forma nova; mas, ao absorver as formas anteriores, afinal só contribuiu para a conservação das próprias cerimónias.

Cortesia de uc

A indicar perfeitamente a origem remota das cerimónias académicas, aí está a sobriedade primitiva, os gestos altamente simbólicos - a imposição das mãos, a colocação do anel no dedo anular da mão esquerda, a entrega do livro, e a própria língua utilizada, que não é a pátria, mas o velho latim e geralmente com formulas arcaicas. Mesmo quem não defenda uma comunidade semântica europeia da fenomenologia das solenidades - que têm, mais ou menos todas elas, fundo romano, transformações cristãs, adaptações modernas, mesmo esse não pode negar pelo menos uma certa analogia entre o acto soleníssimo que estamos realizando e a cerimónia antiquíssima do «sacrametum militae».

O soldado romano, depois de ter lutado em vários campos de batalha e de ter obtido aí os seus triunfos, e depois de ter ensinado alguns novos na arte militar, só então, para ingressar na legião nobre do exército, se apresentava, um belo dia, em ambiente soleníssimo, perante o magistrado munido de «imperium militae» e o «tribunus militaris», diríamos, respectivamente, o Reitor e o Director da milícia. Não falava dos seus méritos, os arautos encarregar-se-iam disso; fazia apenas, embora através da técnica do «praeire verbis» e utilizando fórmulas carregadas de potência mágica, fazia um juramento, em tom grave e solene, de que havia de servir a «militia» com toda a dedicação e com inteira fidelidade, nomeadamente prometendo combater, fosse onde fosse. Além da invocação dos deuses para garantir esta sua promessa, devia também invocar a seu favor um ou dois testemunhos; e ainda poderia invocar uma pessoa como modelo de cumprimento do dever, embora ela não tivesse pertencido à «militia», se essa pessoa fosse da sua família ou da sua «gens».

Cortesia de uc

Magnífico Reitor: Neste momento igualmente soleníssimo, também não apresento méritos para entrar na legião nobre desta valorosa milícia académica. Conheço a minha pequenez e os limites das minhas forças. Não ignoro as responsabilidades que vou contrair ao ingressar na gloriosa teoria de sábios doutores desta veneranda Universidade.
Não apresento méritos...
Apresento, sim, o meu «sacramentum militiae, militiae... academicae», a promessa firme de trabalhar para ajudar a manter o engrandecimento desta Escola Jurídica, verdadeiramente Superior; de despender aqui as minhas energias e o meu entusiasmo, pois sinto nitidamente ser esta a minha vocação e sinto como força imperiosa ser esta a forma de me realizar. Como o antigo soldado de Roma, desejo invocar dois testemunhos para garantir este meu «sacramentum militae academicae».

O primeiro é o dos meus professores, de todos os meus professores, desde Bougado, Braga e Salamanca, mas em especial os desta prestigiosa Faculdade de Direito, que hão-de continuar sempre meus Mestres através da vida. Para testemunhar a minha fidelidade à investigação científica, acompanha-me o eminente e genial romanista D. Álvaro D'ORs, de quem me orgulho de ser discípulo.
Deveria ainda o soldado da Velha Roma adestrar alguns novos antes de ascender à exército. Como segundo depoimento, apresento também alguns novos que já iniciei no perene saber do «Ius Romanum»; em especial, os meus primeiros alunos, cuja imposição de insígnias, por feliz coincidência, ontem efectuada, constituiu, para mim, a mais agradável vigília desta festa. Ao invocar o seu depoimento, pretende-se dar-lhe um sentido verdadeiramente universitário, já que a Universidade, desde o início, foi «Universitas magistrorum et scholarium» e hoje, ou é uma comunidade de professores e alunos, em que juntos podem e devem lutar pela prossecução de interesses comuns, ou não é nada. Desta forma, cumpro também a orientação superiormente traçada por Vós, Magnífico Reitor, quando nesta mesma sala, ainda há quatro semanas, insistíeis nas vossas afirmações de 2l de Outubro de 1963:
  • «as relações pessoais entre professores e alunos devem exercer-se intensamente, não só nas aulas e em colóquios, mas também na vida normal e nos momentos solenes».

Cortesia de uc

E ainda na sequência última da imagem clássica contemplada, evoco também um modelo de excepcional grandeza. Como ninguém, influiu extraordinariamente na formação da minha personalidade. Um Homem!
Indomável ou afectuoso, bravo ou cheio de carinho, nele sobressaía sempre a elegância das atitudes morais. Nele claramente se via a imensa força dessa realidade delicada e inacessível que nos homens se chama consciência. Neste dia para mim carregado de emoções fortes de vária ordem, sinto bem viva a meu lado a sua presença espiritual.
Já partiu, e também... há vinte e cinco anos. Foi à minha primeira Missa e à última da sua vida. Orei com ele pela derradeira vez, e ungi-o como se ungem os atletas da Fé para a grande etapa da existência. Esse Homem... Não é preciso dizer o seu nome. Todos os que o conheceram, e tantas são as pessoas que aqui se encontram, todos sabem perfeitamente que é meu Pai.

Pois bem, Magnífico Reitor, é este modelo e esta testemunha qualificada que também desejo evocar aqui para garantir a minha seriedade e honestidade na docência e na investigação científica, já que ele era seriíssimo e honestíssimo no seu trabalho.

Cortesia de uc

Magnífico Reítor:
Se é bastante esta minha promessa solene de dedicação à Ciência e à Universidade este, o meu «sacramentum militiae», acompanhada da garantia das testemunhas invocadas e das pessoas aqui presentes, vindas de longe e de perto, a quem manifesto, a todas, o mais sincero e vivo reconhecimento, dignai-vos benevolamente conceder-me as insígnias doutorais da gloriosa Faculdade de Direito de Coimbra».

In Sebastião Costa Cruz, Doutoramento Solene, Petição de Grau, Novembro de 1966, Gráfica de Coimbra, Coimbra 1967.

Cortesia de Gráfica de Coimbra/Universidade de Coimbra, JDACT