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No Ribatejo.
«Neste estado de espírito escreveu também o poeta o seguinte soneto, extraído por Juromenha do Cancioneiro de Franco Corrêa (fl. 139):
Quando descansareis, olhos cansados,
Pois já não vedes quem vos dava vida,
Ou quando vereis fim e despedida
A tantas desventuras e cuidados?
Ou quando quererão meus duros fados
Erguer minha esperança tão caída,
Ou quando, se de todo é já perdida,
Alcançar poderei meus bens passados?
Bem sei que hei de morrer nesta saudade,
Em que meu esperar é todo vento,
Pois nada espero ao que desejo.
E, pois tão clara vejo esta verdade,
Bem pode vir a mim todo o tormento,
Que não me ha de espantar, pois sempre o vejo.
E cada vez mais desanimado, cada vez mais ansioso por ver terminar o seu exílio, escreveu Camões a bella «Elegia do desterro», que, segundo W. Storck, «excede tudo quanto até então poetara, tanto pela pureza de suas linhas construtivas e unidade de concepção, como pelo vigor das ideias e formosura da expressão pathetica»:
O sulmonense Ovidio, desterrado
Na aspereza do Ponto, imaginando
Ver-se de seus penates apartado,
Sua cara mulher desamparando,
Seus doces filhos, seu contentamento,
De sua pátria os olhos apartando,
Não podendo encobrir o sentimento,
Aos montes já, já aos rios se queixava
De seu escuro e triste nascimento.
O curso das estrellas contemplava
E aquella ordem com que discorria
O ceo, e o ar, e a terra adonde estava.
Os peixes por o mar nadando via,
As feras por o monte procedendo,
Como o seu natural lhes permittia.
De suas fontes via estar nascendo
Os saudosos rios de crystal,
A sua natureza obedecendo.
Assi só, de seu próprio natural
Apartado, se via em terra estranha,
A cuja triste dor não acha igual.
Só sua doce musa o acompanha
Nos soidosos versos que escrevia
E nos lamentos com que o campo banha.
Dest'arte me figura a phantasia
A vida com que morro, desterrado
Do bem que em outro tempo possuia.
Aqui contemplo o gosto já passado.
Que nunca passará por a memoria
De quem o trás na mente debuxado.
Aqui vejo caduca e débil gloria
Desenganar meu erro co a mudança
Que faz a frágil vida transitória.
Aqui me representa esta lembrança
Quão pouca culpa tenho e me entristece
Ver sem razão a pena que me alcança.
Que a pena que com causa se padece
A causa tira o sentimento della;
Mas muito doe a que se não merece.
Quando a roxa manhã, dourada e bella,
Abre as portas ao sol e cái o orvalho,
E torna a seus queixumes Philomela,
Este cuidado, que co sono atalho.
Em sonhos me parece, que o que a gente
Por seu descanso tem, me dá trabalho.
E despois de acordado cegamente
(Ou, por melhor dizer, desacordado.
Que pouco acordo logra um descontente),
D'aqui me vou com passo carregado
A um outeiro erguido, e ali me assento.
Soltando toda a rédea a meu cuidado.
Despois de farto já de meu tormento.
Estendo estes meus olhos saudosos
Á parte donde tinha o pensamento.
Não vejo senão montes pedregosos
E sem graça e sem flor os campos vejo,
Que já floridos vira e graciosos.
Vejo o puro, suave e rico Tejo
Com as concavas barcas, que nadando
Vão pondo em doce effeito o seu desejo.
Umas com brando vento navegando,
Outras com leves remos brandamente
As crystallinas aguas apartando.
D'ali falo com a agua que não sente,
Com cujo sentimento esta alma sái
Em lagrimas desfeita claramente.
O fugitivas ondas, esperai,
Que pois me não levais em companhia,
Ao menos estas lagrimas levai.
Até que venha aquelle alegre dia,
Que cu vá onde vós ides, livre e ledo.
Mas tanto tempo quem o passaria?
Não pode tanto bem chegar tão cedo,
Porque primeiro a vida acabará,
Que se acabe tão áspero degredo.
Mas esta triste morte que virá,
Se em tão contrario estado me acabasse,
Esta alma assi impaciente adonde irá?
Que, se ás portas tartaricas chegasse,
Temo que tanto mal por a memoria
Nem ao passar do Lethe lhe passasse.
Que se a Tântalo e Ticio for notória
A pena com que vai e que a atormenta,
A pena que lá têm, terão por gloria.
Essa imaginação, emfim, me aumenta
Mil maguas no sentido, porque a vida
De imaginações tristes se contenta.
Que pois de todo vive consumida,
Porque o mal que possue se resuma,
Imagina na gloria possuída.
Até que a noite eterna me consuma.
Ou veja aquelle dia desejado,
Em que a fortuna faça o que costuma,
Se nella ha hi mudar-se um triste estado.
Vê-se que o poeta, nesta elegia, só muito vagamente se refere aos seus amores, que, além disso, considera ou quer que sejam considerados como coisa já passada. O que ele procura tornar bem patente é a desproporção entre a sua culpa, pequena ou nenhuma, e a dura pena que está sofrendo. O que o preocupa é o ardente desejo de voltar para Lisboa, é o receio de que venha a morte, antes de chegar esse alegre dia.
NOTA: É o «gosto» que, embora nunca haja de lhe sair da memória, o poeta considera como «já passado». É o «erro», de que está «desenganado». É a «gloria, possuída», isto é, que já possuiu. É a parte onde «tinha» o pensamento. É talvez o «bem que em outro tempo possuía», se com isto não quer aludir, por exemplo, à perda do lugar que desempenhava em cãs de D. Francisco de Noronha.
Documentando o seu pedido com esta elegia, é natural que pessoas amigas do desolado poeta intercedessem por ele e lhe obtivessem a necessária autorização para poder voltar para a capital. Pelo seu carácter e ainda por circunstâncias especiais a que em breve me hei de referir, a grave, inteligente e bondosa infanta seria a primeira a desejar que terminasse quanto antes, e sem deixar vestígios, um incidente em que ela, embora involuntariamente, se achava envolvida.
Quanto tempo se demorou o poeta no Ribatejo?
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Vimos que o exílio começou na Primavera. Ora a egloga 2ª reporta-nos ao fim desta estação ou ao começo do estio. Repare-se, com efeito, nestas passagens:
A noite escura dava
Repouso aos cansados
Animais, esquecidos da verdura;
O valle triste estava
C’uns ramos carregados,
Qu'inda a noite faziam mais escura;
Offrecia a espessura
Um temeroso espanto.
As roucas rãs soavam
Num charco d'agua negra, e ajudavam
Do pássaro nocturno o triste canto.
……………………….
Ao sonoroso pranto,
Que as aguas enfreava,
Responde o valle umbroso.
Leia-se também esta deliciosa descrição da madrugada:
Formosa manhã, clara e deleitosa,
Que, como fresca rosa na verdura,
Te mostras bella e pura, marchetando
As nymphas, espalhando teus cabellos
Nos verdes montes bellos: tu só fazes,
Quando a sombra desfazes, triste e escura,
Formosa a espessura e a clara fonte,
Formoso o alto monte e o rochedo,
Formoso o arvoredo e deleitoso,
E emfim tudo formoso co teu rosto,
D'ouro e rosas composto e claridade.
Trazes a saudade ao pensamento,
Mostrando, em um momento, o roxo dia,
Com a doce harmonia nos cantares
Dos pássaros a pares, que, voando,
Seu pasto andam buscando, nos raminhos,
Para os amados ninhos, que manteem.
Oh grande e summo bem da natureza!
Estranha subtileza de pintora,
Que matiza em uma hora de mil cores
O ceu, a terra, as flores, monte e prado!
E a «elegia do desterro» deve ter sido escrita no fim do Verão ou no Outono:
Daqui me vou, com passo carregado,
A um outeiro erguido e alli me assento,
Soltando toda a rédea a meu cuidado.
Despois de farto já de meu tormento,
Estendo estes meus olhos saudosos
Á parte donde tinha o pensamento.
Não vejo senão montes pedregosos,
E sem graça e sem flor os campos vejo,
Que já floridos vira e graciosos.
Finalmente, se é de Camões o soneto publicado por Juromenha, sob o número 333, o exílio ainda durava nos fins do Outono ou princípios do Inverno117». In José Maria Rodrigues (3 1761 06184643.2), Coimbra 1910.
Cortesia do Arquivo Histórico/Universidade de Coimbra/PQ 9214 R64 1910 C1 Robarts/JDACT