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NOTA: Texto na versão original
A Infanta D. Maria
«Em outra occasião, ao receber em seus aposentos, cercada de quatro matronas, quatro damas e tres donzellas que pareciam três graças, a um legado pontificio, ella apresentou-se com o mesmo recato: toda de velludo preto, e corpo afogado. É verdade que nesse ensejo contava vinte annos a mais. Mas tendo herdado joias esplendidas da mãe enfeitara-se d'esta vez com ricos adornos de ouro, e uma corôa de rubis e diamantes. Não falta, porém, quem a descreva em galas vistosas. Quando na côrte festejavam, n'um dos ultimos momentos de gloria e regosijo de D. João III, a puberdade do Principe D.João que ensaiava armas no novellesco torneio de Xabregas (1552), a Infanta brilhava em setim encarnado com recamado d'ouro e prata, e dianteira de trança de ouro e perolas. E essas galas tornaram-na tão bella que o poeta que assim descreve as roupagens, um moço da camara do Infante D. Duarte, não se aventura a devassar-lhe os encantos do rosto. Por circumloquios num simile feliz, comquanto pouco novo, diz apenas:
- «para a eu desenhar vou-me com o pintor que cobriu o rosto de Agamenon no sacrifricio de Iphigenea, porque cousas em que a natureza abalisa seu extremo não lhe chega engenho humano para entendê-las».
Do mesmo modo procedeu o auctor das Decadas. Tocando vagamente na sua graça natural cita o prolóquio:
- «a quem Deus quer bem, no rosto lhe vem».
Evidentemente entre os eruditos da côrte constava que a Infanta, bizarra, e na consciência da dignidade do seu estado, admittia que ao vulgo profano se fallasse das linhas do seu rosto, ou da elegancia das suas esplendidas formas esculpturaes. Apenas o velho Resende, ao tributar-lhe homenagens, adiantava-se até tocar em alguns pormenores: os cabellos ruivos, o andar divino, «incessu dea», lembrando a Venus de Lucrecio:
- «incessu patuii dea».
Mas esse... fallava latim.
Para findar, mais uma observação. Parece que graças á robustez da sua constituição, D. Maria conservou longamente certa frescura juvenil. Venturino, o secretario do cardeal Alexandrino, opinava, ao vêla em 1571, que nenhum desprevenido lhe teria dado os cincoenta annos já decorridos.
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Era fructo ultimo do terceiro matrimonio do rei Venturoso com a joven D. Leonor d'Austria, irman mais velha do Imperador Carlos V. Meio anno depois do nascimento da Infanta D. Maria (a 8 de Junho de 1521) o monarca fallecia, deixando ambas, mãe e filha, numa situação melindrosa e anormal, embora legalmente constituida.
D. Leonor fôra promettida primeiramente ao principe D. João (III), quando ninguem podia prever o fim da boa e prolifica rainha D. Maria, e menos ainda a pressa com que o desolado viuvo quasi quinquagenario, convolaria a terceiras nupcias, por conselho de poucos, quasi a furto, e exactamente com a noiva do seu primogenito e herdeiro. «Es este el bovo? havia perguntado, ao entrar em Portugal, fitando surprehendida e com curiosidade o enteado, rapaz viçoso de dezasete annos, dando assim a conhecer os meios illicitos e manhosos que os enviados de D. Manoel haviam empregado, para a fazer mudar de proposito, a ella e seu irmão. Era todavia voz publica que d'esses planos contrariados havia surgido uma verdadeira e violenta afeição que não se extinguira, mas antes medrára no curto prazo de tres annos de consorcio com D. Manoel. Depois do advento ao throno do successor. um partido numeroso de cortesãos e populares, julgando comprazer-lhe advogava o consorcio dos dois namorados, emquanto outros o impugnavam, acreditando na opposição da curia contra o casamento do enteado com a madrasta. Boatos calumniosos corriam. O Imperador para evitar escandalos, cortou o nó, decidindo que D. Leonor regressasse sem delongas.
A Infantinha havia de acompanhá-la pois no contracto, como em previsão do caso, fôra estipulado que D. Leonor podesse, enviuvando, sahir do reino, com seus filhos e creados, sem precisar de licença especial do soberano português.
- «Si Dios ordenase que el dicho señor Rei de Portugal fallezca d'esta vida presente primero que la dicha Señora lnfanta, que ella, sus hjos y creados se puedan partir de los dichos reinos y señorios de Portugal, queriendo-lo fazer, y se puedan venir a Castella o a otra parte, para donde les pluguiere, sin le ser puesto embargo en ella ni a los que con ella vinieren… sin ser obligado de aver licencia del Rey de Portugal, que en aquel tiempo fuere».
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A despeito d'esta clausula D. João III oppos-se, não á partida de D. Leonor, mas á da filha, a qual o clamor da capital, excitada por tres annos de intrigas e calumnias, reclamava, perguntando com vivo rigor:
- «onde mandaes a nossa. infanta, nascida como em nossos braços, filha legitima do nosso natural rey, successora e herdeira en seu grau, nossa paz presente, alliança futura, riqueza certa?»
E o soberano não achava prudente, nem sabia como restituir no curto prazo legal de quatro annos as avultadissimas quantias a que a Infanta tinha direito. Se D. Leonor podesse então prevêr o destino ulterior da filha, a sua vida entrecortada de desgostos, as tristes especulações, de que foi alvo por causa dos calculos e manejos profundamente egoistas do rei, seu irmão; se podesse prevêr com que facilidade Carlos V havia de sacrificar affeições pessoaes aos seu planos politicos; se adivinhasse, insistia com certeza com mais energia no cumprimento do contracto, reclamando os seus direitos! Partiu, porém (Maio de 1523), sem a filha, que não tornou mais a vêr, senão trinta e cinco annos depois, poucos dias antes de morrer (1558)!
Não vou devanear sobre o que aconteceria e qual teria sido a sorte da Infanta, uma vez passadas as fronteiras de Portugal. Assim, permaneceu orfan, com dois annos apenas, em poder del-Rei seu irmão entre «tres malicias coronadas» e desencontradas, que cubiçavam os seus bens. Sob a direcção immediata da Rainha D. Catharina, foi creada por D. Joanna de Blasfeldt, sua aia e depois camareira-mór, que viera de Castella com a rainha D. Leonor, com os desvelos que competiam á sua elevada gerarchia, cercada de fausto e com o apparato de uma grande côrte. Mas é impossivel affirmar que os tutores a trataram com carinho e amizade fraternal. Antes, ha razões de sobejo para crêr que D. João III, embora simulasse attender sempre com muito respeito as opiniões da rainha de França, sympathisava pouco com a meia-irman, fructo de um matrimonio de que sempre se dera por offendido». In Carolina Michaelis de Vasconcelos, A Infanta D. Maria de Portugal (1521-1577) e as suas Damas, edição fac-similada, Biblioteca Nacional, Lisboa, 1994, ISBN 972-565-198-7.
Cortesia de Biblioteca Nacional/JDACT