Cortesia de editorialresistencia
«No dia 22 de Dezembro, fez 10 anos que José Régio, na sua casa de Vila do Conde, faleceu. Dos meus apontamentos que formam um diário, muitas vezes interrompido, muitas vezes retomado, extraio, quase na íntegra.
«Era para escrever ontem à noite. Sentia vontade e até necessidade de o fazer. Estava, porém, um pouco indisposto e, por isso, só o faço hoje. Posso perguntar a mim mesmo:
- por que senti necessidade de o fazei ontem à noite? Era o primeiro sábado, num dos que jantei em casa e que não o fazíamos com a presença de Régio.
Já há mais de dois meses, é verdade, que não íamos jantar com ele por estar retido no leito; mas, nos nossos corações, nuns mais noutros menos, havia a esperança de que ele ficaria bom, voltaria a preencher o mundo das nossas conversas de sábado. Esperávamos só o dia para ele voltar. Hoje já temos a certeza de que ele não voltará ao nosso meio, o seu lugar à nossa mesa ficará vago, durante meses e até anos decerto, a marcar um vazio que ninguém será capaz de encher.
No dia 22 deste mês, José Régio, na sua casa de Vila do Conde, rodeado dos seus livros, dos seus santos, Cristos, ex-votos piedosos, santuários, pratos e muitas outras coisas suas, expirou serenamente para o sono eterno. Morreu sem que ninguém lhe pressentisse a morte imediata.
No dia 1 de Dezembro de 1967, no Monte da Madalena, sobranceiro a Ponte de Lima que se vê ao fundo.
Cortesia de editorialresistencia
Ainda perto das duas horas da manhã, conversou com o rapaz companheiro de muitas das suas voltas neste período de doença, o senhor Viana. Parece que as últimas palavras, que se lhe ouviram, foram para o companheiro que descansava numa cadeira ao lado:
- «agora, apague-se a luz e vamos dormir».
Apagaram-se as luzes e cada um adormeceu. As luzes voltaram-se depois, perto das oito horas, a acender mas de maneira diferente para ele e para os outros. Para este, a luz do dia a dia, no meio do frio, das atribulações de se ser homem sujeito às leis da natureza. Para ele não se abriram estas luzes; abriu-se a luz para a eternidade, para o conhecimento de milhentas questões que o preocupavam em vida, para o desfazer de incertezas certas ou já incertas, mais certa já abriu-se a luz imorredoura da glória e da imortalidade nas letras portuguesas. Desde as 8 horas da manhã do dia 22 de Dezembro de 1969, Portugal tinha menos uma inteligência viva a projectá-lo para a glória do pensamento e das letras no mundo, mas podia levantar dali em diante um altar a este herói sagrado das letras e do pensamento.
«Apaguem-se as luzes» foram estas as últimas palavras que se lhe ouviram e se talharam nos seus lábios. A noite de 21 para 22, no dizer do senhor Viana, foi bastante calma com as interrupções de sono que já eram habituais; somente pelas 5 horas da manhã pediu ao Viana que se fosse ao Porto naquela manhã ou no dia seguinte que lhe trouxesse de lá urnas coisas.
José Régio, em 1 de Dezembro de 1967, em Ponte de Lima, frente à antiga cadeia.
Cortesia de editorialresistencia
Pela 1 hora da madrugada, esteve indeciso entre tomar uma pastilha para poder dormir mais depressa ou não tomar. Iria fazer por dormir, mas seria por vontade dele e não por acção dum agente estranho a si.
Pelas 8 horas chegou o médico, o primo Dr. José de Sousa Pereira que o tratou, orientado por um cardiologista, para a visita do costume: nem luz no corredor nem dentro do quarto. O senhor Viana dormia. José Régio dormia também. O Dr. Sousa Pereira chamou. O Viana respondeu e informava que a noite tinha sido, dentro do habitual sem nada de anormal. O médico ia retirar-se para não perturbar o sono de Régio. Ele dormia bastante mal durante a noite mas, nas primeiras horas da manhã, costumava dormitar um pouco com mais tranquilidade. No decorrer de dois meses e alguns dias de doença assim aconteceu.
O Viana, porém, querendo saber se havia alguma instrução de tratamento a receber, acendeu a luz e ia dirigir-se para a porta semi-aberta para o corredor quando reparou que Régio tinha a boca um bocado aberta e os olhos não estavam no seu normal. Verificaram que a sua alma tinha deixado o corpo e já voava nos caminhos ou nas encruzilhadas que verdadeiramente levam a Deus.
Régio tinha morrido, serenamente, a dormir, sem qualquer espécie de sofrimento nem consciência dele. Costumava segurar na mão um botão de campainha eléctrica para chamar sempre que sentisse qualquer coisa. No decorrer destes dois meses, com a aflição a saltar-lhe do rosto, muitas vezes, premiu o botãozinho branco a brilhar no envólucro negro do interruptor da campainha». In Paulo Ferro, A Dez Anos da Morte de José Régio, Editorial Resistência SARL, 1980.
(Continua)
Cortesia de Editorial Resistência/JDACT