Jamais houve homem menos
maquiavélico do que Maquiavel. In Villari
Maquiavel, o prisioneiro do
maquiavelismo
«Encerro este texto de apresentação na véspera de terminarem os
cinquenta e oito anos da minha vida, a idade com que morreu Niccolò Machiavelli. E encerro-o
lembrando um pensamento seu: numa
cidade corrupta, as repúblicas não podem manter-se nem recriar-se. Por
isso, ele terá escrito o Príncipe. Por causa disso, a História
amaldiçoou-o, condenando-lhe o nome, como se através da desconsideração pública
lhe ferisse o coração da honra. Vejamos
como.
Este exercício, porque trivial, é um começo necessário. Consulte-se um
dicionário da língua portuguesa, uma enciclopédia, para maior alcance: Maquiavel deu origem, pelo menos no
nosso léxico, ao substantivo
maquiavelismo e ao adjectivo
maquiavélico. É uma escalada que, começando com um nome de pessoa,
termina num qualificativo de sentido pejorativo. Veja-se, por exemplo, a Enciclopédia
Luso-Brasileira:
- Maquiavelice, acção ou dito maquiavélico; astúcia, ronha, manha, ardil. Maquiavelismo, sistema político que assenta na astúcia, na perfídia e que foi exposto por Maquiavel.
NOTA: A Enciclopédia consigna mesmo a forma verbal maquiavelizar,
ilustrando a ideia. O Dicionário de Moraes regista o mesmo sentido. O editado em
2001 pela Academia das Ciências de Lisboa diz que o maquiavelismo é o comportamento
político desleal, desprovido de boa-fé ou o comportamento do que tem
falta de escrúpulos, do que ludibria e prejudica, para conseguir o seu objectivo.
Só a um homem de excepção sucede um tal azar. A causa disso foi um
livro que ele nunca chegou a publicar, editado em 1532, sete anos após a sua morte, precisamente este livro escrito
por quem sofreu a malignidade da
Fortuna, como ele descreveu a fatalidade do seu percurso. Esta
apresentação é a narrativa de uma tragédia existencial, O Príncipe visto como um
produto de amargura, de grandeza agónica, de desespero, mas também, nas sucessivas
interpretações que concitou, um espelho das doridas contradições sociais,
políticas e religiosas dos vários séculos de História durante os quais a obra
sobreviveu até chegar, como um clássico, aos nossos dias. Tudo convergiu para
que o acaso não pudesse gerar diferente destino. A verdade do escrito é a do
efeito que produziu.
Descobri que para ler este pequeno livro e entender a complexidade que
se esconde por detrás da sua vulgar linguagem importaria conhecer o seu autor,
retirá-lo do imaginário colectivo, que ora o transformou numa espécie de
cortesão alcoviteiro de tiranos, com eles partilhando os arminhos do poder, ora
em republicano desprezado pela República, amigo do povo e dele seu discreto
defensor, e ir buscá-lo ao momento de exílio, res perdita, sofrido o
desemprego, sujeito à prisão e à tortura, o dia gasto em convívio com gente
boçal, a noite esgotada em fantasias delirantes em companhia dos Antigos,
a dura modéstia do quotidiano e a ânsia de obter qualche cose dos de Medici ou do papa, um de Medici
também, algo que lhe devolvesse o sentido de utilidade e algum rendimento,
como nos tempos idos em que era o secretário da Segunda Chancelaria da cidade
de Florença.
NOTA: Duas notas interessantes. Primeira, para referir que o de,
sempre minúsculo, é a abreviatura de dei, antes da consoante, e de degli,
antes da vogal, para fazer referência à família de que se trate. Segunda,
que, por falar em papas, os de Medici deram origem a três. O próprio
papa Pio IV pretendeu ser membro da família, sem o ser!
Filho de advogado literato e por isso pobre, Nicolau Maquiavel, cultor
das letras, pobre morreu também. Legou-nos, inédita, uma obra que é um sonho
fantasioso de grandeza, tal como o estranho sonho que terá tido, segundo
consta, antes de morrer». In Nicolau Maquiavel, O Príncipe, Introdução
de José António Barreiros, tradução a partir do original de Maria Jorge
Figueiredo, Editorial Presença, Lisboa, 2008, ISBN 978-972-23-3951-3.
Cortesia de E. Presença/JDACT