O
antissemitismo como uma ofensa ao bom senso
«(…) Após a catástrofe final, isto
é, após a aniquilação quase completa dos judeus da Europa, a tese do antissemitismo
eterno tornou-se mais perigosa do que nunca, pois ela poderia levar até à
absolvição os mais tenebrosos criminosos entre os antissemitas. Longe de
garantir a sobrevivência do povo judeu, o antissemitismo ameaçou-o claramente
de extermínio. Contudo, essa explicação do antissemitismo, tal como a teoria do
bode expiatório, e por motivos semelhantes, sobreviveu ao confronto com a
realidade, pois ela acentua a absoluta inocência das vítimas do terror moderno,
o que aparentemente é confirmado pelos factos. Em comparação com a teoria do
bode expiatório, ela tem até a vantagem de responder à incómoda questão por
que os judeus e não outros? de maneira simplória: eterna hostilidade. É
deveras notável que as doutrinas que ao menos tentam explicar o
significado político do movimento antissemita neguem qualquer responsabilidade
específica da parte dos judeus e se recusem a discutir o assunto nestes termos.
Ao implicitamente recusarem abordar o significado da conduta humana,
assemelham-se às modernas práticas e formas dos governos que, por meio do
terror arbitrário, liquidam a própria possibilidade de acção humana.
De certa forma, nos campos de extermínio nazistas os judeus eram assassinados
de acordo com a explicação oferecida por essas doutrinas à razão do ódio: independentemente
do que haviam feito ou deixado de fazer, independentemente de vício ou virtude pessoais.
Além disso, os próprios assassinos, apenas seguindo ordens e orgulhosos de sua
desapaixonada eficiência, assemelhavam-se sinistramente aos instrumentos
inocentes de um ciclo inumano e impessoal de eventos, exactamente como os
considerava a doutrina do eterno antissemitismo. Esses denominadores comuns
entre a teoria e a prática não indicam, por si só, a verdade histórica, embora
espelhem o carácter oportunista das opiniões popularmente propaladas, revelando
e explicando porque elas são tão facilmente aceitáveis pela multidão. O
historiador interessa-se por elas enquanto são parte da história de que tratam,
e na medida em que se interpõem no caminho da sua busca à verdade. Mas, sendo
contemporâneo dos eventos, o historiador é tão sujeito ao poder persuasório
dessas opiniões como qualquer outra pessoa. Para o historiador dos tempos
modernos é especialmente importante ter cuidado com as opiniões geralmente
aceitas, que dizem explicar tendências históricas, porque durante o último
século foram elaboradas numerosas ideologias que pretendem ser as chaves da
história, embora não passem de desesperados esforços de fugir à
responsabilidade.
Platão, na sua luta contra os sofistas,
descobriu que a arte universal de encantar o espírito com argumentos nada tinha
a ver com a verdade, mas só visava a conquista de opiniões, que são mutáveis
por sua própria natureza e válidas somente na hora do acordo e enquanto dure o
acordo. Descobriu também que a verdade ocupa uma posição muito instável no
mundo, pois as opiniões, isto é, o que pode pensar a multidão, como
escreveu, decorrem antes da persuasão do que da verdade. A diferença mais
marcante entre os sofistas antigos e os modernos é simples: os antigos satisfaziam-se
com a vitória passageira do argumento às custas da verdade, enquanto os
modernos querem uma vitória mais duradoura, mesmo que às custas da realidade. Noutras
palavras, aqueles destruíam a dignidade do pensamento humano, enquanto estes
destroem a dignidade da acção humana. O filósofo preocupava-se com os
manipuladores da lógica, enquanto o historiador vê obstáculos nos modernos
manipuladores dos factos, que destroem a própria história e a sua
inteligibilidade, colocada em perigo sempre que os factos deixam de ser
considerados parte integrante do mundo passado e presente, para serem
indevidamente usados a fim de demonstrar esta ou aquela opinião. É certo que
seria difícil encontrar o caminho no labirinto dos factos desarticulados, se
fossem abandonadas as opiniões e rejeitada a tradição. Contudo, essas
perplexidades da historiografia são consequências ínfimas se forem consideradas
as profundas transformações do nosso tempo e o seu efeito sobre as estruturas
históricas do mundo ocidental. Dessas transformações resultou o desnudamento
dos componentes, antes ocultos, de nossa história. Isso não significa que o que
desabou na crise (talvez a mais profunda na história do Ocidente desde a queda
do Império Romano) foi mera fachada que encobria esses componentes, embora não
passassem de fachada muitas coisas que, há apenas algumas décadas, eram consideradas
essenciais. A simultaneidade entre o declínio do Estado-nação europeu e o
crescimento de movimentos antissemitas, a coincidência entre a queda de uma
Europa organizada em nações e o extermínio dos judeus, preparado pela vitória
do antissemitismo sobre todos os outros ismos que competiam na luta pela
persuasão e conquista da opinião pública, têm de ser interpretadas como sério
elemento no estudo da origem do antissemitismo. O antissemitismo moderno deve
ser encarado dentro da estrutura geral do desenvolvimento do Estado-nação,
enquanto, ao mesmo tempo, a sua origem deve ser encontrada em certos aspectos
da história judaica e nas funções especificamente judaicas, isto é,
desempenhadas pelos judeus no decorrer dos últimos séculos. Se no estágio final
da desintegração os slogans antissemitas constituíam o meio mais eficaz
de inspirar grandes massas para levá-las à expansão imperialista e à destruição
das velhas formas de governo, então a história da relação entre os judeus e o
Estado deve conter indicações elementares para entender a hostilidade entre
certas camadas da sociedade e os judeus». In Hannah Arendt, The origins
of totalitarianism, 1949, Origens do Totalitarismo, Mary McCarthy West,
1979, Wikipédia.
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