terça-feira, 5 de novembro de 2013

A Paixão. Tetralogia Lusitana. Almeida Faria. «Os pequenos ocupam o grande quarto ao fundo, Jó à direita, junto à porta, e Tiago, o mais novo, ao pé da janela esquerda; em frente das camas, da mesa de cabeceira e do quadro com o anjo da guarda…»

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Francisco
«(…) E as terras foram tuas por quatro escudos o hectare e depois os ganhões fizeram a escalva, os seareiros vieram arrendar terra limpa, os imensos montados e azinhais e olivais surgiram, tu viste palpável toda a tua ambição, por isso foste forte até bem velho e de repente, a subir uma escada nesse teu passo firme, tiveste uma tontura e um desmaio e, por um raivoso desconsolo no olhar, quando palavras te faltavam, vi que ias morrer, que morrias depressa, arrogante, sem dar parte de fraco, e tuas vaidades e apetites do mundo, cavalos e amantes, tudo passou, velho, já não volta e não valeu a pena, agora a fortuna vai desmoronar-se e de ti, velho, vai ficar a memória de teres arranjado uma grande fortuna para nada, por isso agora que deixaste esta pocilga te recordo e o teu destino e morte me comovem, a mim, teu neto predilecto. - Francisco, estás acordado? - Estou, mais ou menos, mais que menos. - Tenho de ir à cozinha ver como as coisas correm e acordar os pequenos.

Os pequenos ocupam o grande quarto ao fundo, Jó à direita, junto à porta, e Tiago, o mais novo, ao pé da janela esquerda; em frente das camas, da mesa de cabeceira e do quadro com o anjo da guarda, fica a ampla sacada para o largo; está escuro e ambos sonham, ou sonharam, ou hão-de sonhar sombra, ainda que o não saibam, não recordem, do fundo de suas trevas sem memória; Jó: estava no colégio, no pátio cheio de sol, quando o carcereiro veio para mim com ar irado disposto a matar-me; olhei à volta, vi que não havia porta por onde ir; dei uma corrida e, com um grande esforço, passei o muro voando, subindo a grande altura, enquanto o director disparava a metralha para o ar, porém em direcção inversa à minha; vibrando os braços à laia de remos passei por cima de uma praia em que as pessoas se transformaram de súbito em formigas; corria sob o mar comboio vermelho enorme peixe; sem parar continuei sobrevoando caminhos vários onde tentei pousar; cansado; creio mesmo que pousei mas parti logo, com medo de ser preso pela gente festiva que passava; por fim aterrei num grande armazém, espécie de estação de caminho de ferro, onde de novo pus os pés em terra; um rapaz do meu tamanho acompanhava-me quando cheguei onde dois homens conversavam, na estação que, neste momento, antes uma fábrica velha parecia ou um lagar, não havia carruagens nem locomotivas, apenas carroças verticais abandonadas; desconfiei que estes homens me queriam mal; possivelmente, pela rádio, o guarda da prisão tinha avisado e, com efeito, sem explicações, ali me meteram numa grande marquise, donde pensei poder escapar voando, porém logo reparei ter o cimo coberto de vidro verde fosco sem um raio de sol e isto revoltou-me, mais ainda porque comigo fora preso o rapazito; enquanto um dos homens se ausentava, talvez para telefonar, o outro entrou com a mulher, esta afirmou-me que ficaria no quarto número vinte sete; sabia que aquele era o quarto dela, mas para ter a certeza perguntei e ela disse: sim, é o nosso quarto; e abraçou-se a mim com muita força, muita, muita força (Jó acordou espor… e levantou-se ágil, para ir à casa de banho, naquele corredor, do outro lado)». In Almeida Faria, A Paixão, 1965, Editorial Caminho, O Caminho da Palavra, Lisboa, 6ª edição, 1986.

Cortesia de Caminho/JDACT