Francisco
«(…) E as terras foram tuas por quatro escudos o hectare e depois os
ganhões fizeram a escalva, os seareiros vieram arrendar terra limpa, os imensos
montados e azinhais e olivais surgiram, tu viste palpável toda a tua ambição,
por isso foste forte até bem velho e de repente, a subir uma escada nesse teu
passo firme, tiveste uma tontura e um desmaio e, por um raivoso desconsolo no
olhar, quando palavras te faltavam, vi que ias morrer, que morrias depressa,
arrogante, sem dar parte de fraco, e tuas vaidades e apetites do mundo, cavalos
e amantes, tudo passou, velho, já não volta e não valeu a pena, agora a fortuna
vai desmoronar-se e de ti, velho, vai ficar a memória de teres arranjado uma
grande fortuna para nada, por isso agora que deixaste esta pocilga te recordo e
o teu destino e morte me comovem, a mim, teu neto predilecto. - Francisco,
estás acordado? - Estou, mais ou menos, mais que menos. - Tenho de ir à cozinha
ver como as coisas correm e acordar os pequenos.
Jó
Os pequenos ocupam o grande quarto ao fundo, Jó à direita, junto à
porta, e Tiago, o mais novo, ao pé da janela esquerda; em frente das camas, da
mesa de cabeceira e do quadro com o anjo da guarda, fica a ampla sacada para o
largo; está escuro e ambos sonham, ou sonharam, ou hão-de sonhar sombra, ainda
que o não saibam, não recordem, do fundo de suas trevas sem memória; Jó: estava
no colégio, no pátio cheio de sol, quando o carcereiro veio para mim com ar
irado disposto a matar-me; olhei à volta, vi que não havia porta por onde ir;
dei uma corrida e, com um grande esforço, passei o muro voando, subindo a
grande altura, enquanto o director disparava a metralha para o ar, porém em
direcção inversa à minha; vibrando os braços à laia de remos passei por cima de
uma praia em que as pessoas se transformaram de súbito em formigas; corria sob
o mar comboio vermelho enorme peixe; sem parar continuei sobrevoando caminhos
vários onde tentei pousar; cansado; creio mesmo que pousei mas parti logo, com
medo de ser preso pela gente festiva que passava; por fim aterrei num grande
armazém, espécie de estação de caminho de ferro, onde de novo pus os pés em
terra; um rapaz do meu tamanho acompanhava-me quando cheguei onde dois homens
conversavam, na estação que, neste momento, antes uma fábrica velha parecia ou
um lagar, não havia carruagens nem locomotivas, apenas carroças verticais
abandonadas; desconfiei que estes homens me queriam mal; possivelmente, pela
rádio, o guarda da prisão tinha avisado e, com efeito, sem explicações, ali me
meteram numa grande marquise,
donde pensei poder escapar voando, porém logo reparei ter o cimo coberto de
vidro verde fosco sem um raio de sol e isto revoltou-me, mais ainda porque comigo
fora preso o rapazito; enquanto um dos homens se ausentava, talvez para
telefonar, o outro entrou com a mulher, esta afirmou-me que ficaria no quarto
número vinte sete; sabia que aquele era o quarto dela, mas para ter a certeza
perguntei e ela disse: sim, é o nosso quarto; e abraçou-se a mim com muita
força, muita, muita força (Jó acordou espor… e levantou-se ágil, para ir à casa
de banho, naquele corredor, do outro lado)». In Almeida Faria, A Paixão, 1965,
Editorial Caminho, O Caminho da Palavra, Lisboa, 6ª edição, 1986.
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