I Fragmento
«(…) Depois o filme te prendeu. Rocco conta que na Lucânia quando qualquer
casa é construída o dono atira uma pedra ao primeiro que passar porque a
felicidade exige sacrifício. Isto lembra Rocco desejando seu pequeno pobre
paraíso da infância entre olivais para onde há-de voltar se deusquiser com o irmão
mais novo em cujo futuro o princípio da esperança encontra um último refúgio. Ao
intervalo quase nem falaste com Regina e Pedro que deixaste no bar tomando dois
cafés enquanto divagavas pelo átrio e sacada do balcão. Qando estavas ao alto
das escadas Pedro e Regina vieram ter contigo e tu os vias em picada de cima
com olhos de cinema primeiro em plano geral ainda no meio da assistência depois
plano de conjunto grande e logo plano de meio conjunto em seguida plano de pé
depois americano cortados os actores pelos joelhos depois plano de tronco a
partir da cintura logo plano de peito aproximado seguidamente plano vasto até
que as caras se chegaram num grande plano ao nível das gargantas e finalmente
mentalmente filmaste em plano de detalhe os lábios de Regina que
fechavam-abriam sem que entendesses bem o que diziam. À saída Pedro acompanhou
Regina e tu foste a pé para tua casa em direcção à Alameda.
Subiste a escada abriste a porta Graça estava deitada. Hesitaste em
acender a luz mas acendeste e acordaste-a. Ela pronunciou somente o teu nome:
Daniel João que tarde chegaste. Propuseste então para seres perdoado: vamos lá
a ver se és capaz de dizer dez vezes sem descansar vamo-nos-deitar
vamo-nos-deitar vamo-nos-deitar vamo-nos-deitar vamo-nos-deitar vamo-nos-deitar
vamo-nos-deitar vamo-nos-deitar vamo-nos-deitar vamo-nos-deitar.
II Fragmento
Na pejada noite de mistérios surdos ele avançava rápido sem pressa e
aquelas azinheiras de silêncio, aqueles ecos de vozes, voos, saltos animais, aquele
tremor leve de estrelas, tudo ali lhe infundia respeito em vez de medo, em
lugar de ansiedade, espanto, enquanto a cada movimento decidido dos seus pés
havia folhas esmagadas, imperceptíveis sobressaltos e, porque a noite a isso convidava,
via com lúcida claridade o que haviam sido para ele os tempos últimos e o que
poderia vir a ser o futuro e via sobretudo ter de ter com ela uma atitude, fulgor
de luzes no rossio esverdeado aquialém pelas raras árvores e apesar da noite
quente um vento vinha inda-bem-não pelas filas de barracas alinhadas onde gente
passava passeava olhando as montras frágeis dos feirantes as tendas de tiro e
jogos e os comes e bebes cheios de fedor a fumo de farturas quando ele chegou e
falou aos pais dela, a mãe desagradada porque lhe não beijou a mão, mas com seu
hábito de salões sorriu polidamente e quando ele perguntou à rapariga se queria
dar uma volta ela respondeu sim antes de pedir licença aos pais que claro
concordaram, o pai Custódio com indiferença pois não se preocupava com
caprichos, quando fosse para casar interviria, a mãe indecisa, que ele era um
rapaz esperto, diziam, quase doutor ainda por cima e ela sempre tivera admiração
desmedida pelos doutores, isto é, pelos médicos que a tratavam e lhe aturavam
maleitas imaginárias e Maria da Pureza foi com ele e mal se afastaram agarrou-lhe
o braço com desprezo pelos preconceitos dos patrícios mas não podiam conversar
nesse chinfrim: Todos ao último
espectáculo são apenas cem centavos terminou a viagem nova corrida este foi o
triste fado da mulher assassinada pelo marido enciumado, e Maria da Pureza
parecia contente, desviava os cabelos caídos para a cara enquanto escutavam homens
que cantavam, os braços por cima do ombro uns dos outros, o corpo embalado nos cantes descantes que rezavam que viviam presas as rolas presas dum velho
senhor que os comia quando queria na sua indiferença à dor viviam tristes as
rolas porque não tinham amor até o ar não sabia à liberdade anterior vivem
contentes as rolas morreu o velho senhor e o sol que as alumia é o sol
libertador, e o taberneiro pequeno e gordo, a cabeça minúscula
desmiolada curta bolota sobre a abóbora do ventre vasto, arrancando-lhes coroas
por trás do sujo tasco, pois, tinha de ter com ela uma atitude, clara como o
atalho que trilhava na noite hermética, povoada de bichos que espiavam seus
passos por entre rasteiras moitas de estevas e de carqueja e interrogava-se
qual poderia ser o seu caminho e entre os múltiplos dispersos despistados
destinos permanecia indeciso». In Almeida Faria, Rumor Branco, Editorial
Caminho, 4ª edição, Lisboa, 1992, ISBN 972-21-0746-1.
Cortesia de Caminho/JDACT