O Jardim dos Caminhos que se Bifurcam (1941). Tlön, Uqbar, Orbis
Tertius
«Devo à conjunção de um espelho e de uma enciclopédia a descoberta de Uqbar.
O espelho inquietava o Fundo de um corredor numa quinta da calle Gaona, em Ramos Mejía; a enciclopédia falaciosamente chama-se
The Anglo-American Cyclopaedia (Nova
lorque, 1917) e é uma reimpressão literal, mas também tardia, da Encyclopaedia Britannica de 1902. O facto ocorreu há uns cinco
anos. Bioy Casares jantara comigo nessa noite e demorou-nos uma longa polémica
sobre a elaboração de um romance na primeira pessoa, cujo narrador omitisse ou
desfigurasse os acontecimentos e incorresse em diversas contradições, que
permitissem a poucos leitores, a pouquíssimos leitores, o adivinhar uma
realidade atroz ou banal. Do fundo remoto do corredor, espreitava-nos o espelho.
Descobrimos (a altas horas da noite esta descoberta é inevitável) que os
espelhos têm algo de monstruoso. Então Bioy Casares recordou que um dos
heresiarcas de Uqbar havia declarado que os espelhos e a cópula eram
abomináveis, porque multiplicam o número dos homens. Perguntei-lhe a origem
desta memorável sentença e respondeu-me que The
Anglo-American Cyclopaedia a registava no seu artigo sobre Uqbar. A
quinta (que alugáramos mobilada) possuía um exemplar dessa obra. Nas
últimas páginas do volume XLVI deparámos com um artigo sobre Upsala; nas
primeiras do XLVII, com um sobre Ural-Altaic
Languages, mas nem uma palavra sobre Uqbar.
Bioy, um tanto irritado, consultou os tomos do índice. Esgotou em vão
todas as versões imagináveis: Ukbar, Ucbar, Ookbar, Oukbahr... Antes de sair,
disse-me que era uma região do Iraque ou da Ásia Menor. Confesso que assenti
com certo incómodo. Conjecturei que esse país indocumentado e esse heresiarca
anónimo eram uma ficção improvisada pela modéstia de Bioy para justificar uma
frase. O exame estéril de um dos atlas de Justus Perthes fortaleceu a minha
dúvida. No dia seguinte Bioy telefonou-me de Buenos Aires. Disse-me que tinha diante
dos olhos o artigo sobre Uqbar, no volume XLVI da Enciclopédia. Não
constava o nome do heresiarca, mas a notícia da sua doutrina, formulada em
palavras quase idênticas às repetidas por ele, embora, talvez,
literariamente inferiores. Recordara ele: copulation
and mirrors are abominable. O texto da Enciclopédia dizia: … para um desses gnósticos, o visível universo
era uma ilusão ou (mais precisamente) um sofisma. Os espelhos e a paternidade
são abomináveis (mirrors and fatherhood are hateful) porque o multiplicam e o divulgam. Disse-lhe, sem faltar à verdade,
que gostaria de ver esse artigo. Daí a poucos dias trouxe-mo. O que me surpreendeu,
porque os escrupulosos índices cartográficos da Erdkunde de Ritter ignoravam totalmente o nome de Uqbar.
O volume que trouxe Bioy era de facto o XLVI da Anglo-American Cyclopaedia. No ante-rosto e na lombada a indicação
alfabética (Tor-Ups) era a do nosso exemplar, mas em vez de 917 páginas
constava de 921. Estas quatro páginas adicionais compreendiam o artigo sobre Uqbar:
não previsto pela indicação alfabética. Verificámos depois que não havia outra
diferença entre os volumes. Os dois são reimpressões da décima Encyclopaedia Britannica. Bioy adquirira
o seu exemplar num de muitos leilões. Lemos com certo cuidado o artigo. A
passagem recordada por Bioy era talvez a única surpreendente. O resto parecia
muito verosímil, muito ajustado ao tom geral da obra e um tanto maçador. Ao relê-lo,
descobrimos sob a sua rigorosa escrita uma impressão fundamental. Dos catorze
nomes que figuravam na parte geográfica, só reconhecemos três, Khorassão,
Arménia e Erzerum, interpolados no texto de maneira ambígua. Dos nomes
históricos, um só: o impostor Esmerdis, o mago, invocado mais como uma metáfora.
A nota parecia precisar as fronteiras de Uqbar, mas os seus nebulosos
pontos de referência eram rios e crateras e cordilheiras dessa mesma região. Lemos,
por exemplo, que as terras baixas de Tsai Khaldun e o delta do Axa definem a
fronteira do Sul e que nas ilhas desse delta procriam os cavalos selvagens.
Isto no princípio da página 918. Na secção histórica (página 920) soubemos que
devido às perseguições religiosas do século XIII, os ortodoxos procuraram
refúgio nas ilhas, onde perduram ainda os seus obeliscos e onde não é raro
exumar os seus espelhos de pedra. A secção língua
e literatura era curta. Um único aspecto memorável: anotava que a literatura
de Uqbar era de carácter fantástico e que as suas epopeias e lendas nunca se
referiam à realidade, mas às duas regiões imaginárias de Mlekhnas e de Tlön...
A bibliografia enumerava quatro volumes que até agora não encontrámos, embora o
terceiro - Silas Haslam: History of the
Land Called Uqbar, 1874, figure nos catálogos da livraria de Bernard Quaritch.
O primeiro, Lesbare und Lesenswerthe
Bemerhungen über das Land Ukkbar in Klein-Asien, data de 1641, e é obra de
Johannes Valentinus Andreä. O facto é significativo: poucos anos depois, dei
com este nome nas inesperadas páginas de Quincey (Writings, décimo terceiro volume) e soube que era o de um teólogo
alemão que nos princípios do século XVII descreveu a imaginária comunidade da
Rosa-Cruz, que outros fundaram a seguir, à imitação do que ele prefigurara». In
Jorge Luís Borges, Ficções, Maria Kodama, 1989, Teorema, Colecção Mil Folhas,
Público, Porto, 2003, ISBN 84-96075-62-1.
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