Maria Magdalena. A antiodisseia da discípula amada
«(…) Ou seja, à
biografia e perfil de Madalena, que, pelo texto de Lucas, sofria de algumas
enfermidades psicossomáticas, foram acrescentados o perfil de uma mulher
pecadora que ungiu os pés de Jesus, com sua feminilidade explícita (perfumes,
lágrimas, cabelos soltos), e o motivo de seu pecado ter sido identificado
com a prostituição, mais o episódio do quase apedrejamento de uma mulher
adúltera, que nem sequer é nomeada por João. Estava feita a confusão, a
síntese de três biografias, formando o tríplice rosto de Madalena,
endemoninhada, pecadora e prostituta, que perdurou durante séculos entre
leigos no assunto. O imaginário cristão medieval, ao misturar, em um só rosto,
o rosto de diversas mulheres, criou uma
fantasia perturbadora sobre a sexualidade de Madalena. É Moro
que, em sua obra Arqueologia de
Madalena, afirma sobre Madalena o seguinte: … por essa má interpretação de textos, muitas vezes decorrentes de traduções
incorrectas, sua imagem foi sendo formada ao longo dos séculos como mulher
pecadora, alguns até chegaram a julgá-la como prostituta que foi purificada por
Cristo e que, como prova de seu amor espiritual, lavou os pés do Senhor e os
enxugou com os próprios cabelos. Considerada mulher cheia de pecados, Madalena passou a representar o arquétipo
feminino tradicional, a transmissora do pecado original, que, após ser curada,
teria passado a sua vida em penitência e arrependimento. Assim uma das
mais importantes figuras femininas dos Evangelhos teve seu papel adulterado, o
significado de sua presença e de sua obra inteiramente modificados.
Madalena é uma mulher
que não tem pertença, não pertence a ninguém. Ao contrário de outras mulheres
dos Evangelhos que são denominadas como irmã de fulano, mulher de
sicrano, Madalena só é identificada com o sobrenome do lugar de onde procedia: de Magdala, local
conhecido pela abundância da pesca e pelo trabalho com fiação. Ela é uma das
únicas mulheres a terem o seu segundo nome, Magdala, citado, justamente com o
intuito de diferenciá-la das demais Marias. Deste facto, podemos inferir que
poderia ser uma mulher solteira, ou viúva e que tinha posses, porque, segundo
Lucas 8, ela seguia Jesus com os bens dela. Cabe ressaltar aqui algo que tem
passado despercebido para aqueles que imputam à Madalena a condição de
prostituta: se Madalena exercesse a mais antiga profissão do mundo, cairíamos
em uma situação constrangedora para o cristianismo nascente, já que, neste
caso, Jesus e seus discípulos teriam sido mantidos com dinheiro vindo de fontes
duvidosas [...] Por outro lado, o adjectivo usado constantemente para qualificar
Madalena era de expossessa. Se
ela tivesse sido meretriz, o adjectivo seria este em detrimento daquele.
Cabe lembrar que dois
aspectos importantíssimos da biografia de Madalena foram olvidados: ela era Discípula de Jesus e foi a
primeira pessoa para quem Ele apareceu depois da ressurreição, ou seja, ela foi a primeira testemunha da
ressurreição. Em Marcos 1, temos: … havendo
ele ressuscitado de manhã cedo no primeiro dia da semana, apareceu primeiro a
Maria Madalena, da qual expelira sete demónios. Interessante observar
que os discípulos, com medo de serem incriminados como cúmplices, não estavam
presentes nem no Calvário, nem no Sepulcro. Lá estavam somente as frágeis
mulheres, vigiando os acontecimentos. Parece que só as mulheres tinham a sensibilidade
para perceber que algo de sobrenatural aconteceria ali naquela tumba fria. Só sabemos
que Madalena estava no sepulcro, porque não havia nenhum homem; se houvesse,
não saberíamos que ela e as outras mulheres lá estavam, porque a importância do
um único homem suplantaria a presença de meia dúzia de mulheres. É o
evangelista João quem, no capítulo 20, informa que: … tendo disto isto, voltou-se para trás e viu Jesus em pé, mas não reconheceu
que era Jesus. Perguntou-lhe Jesus: Mulher,
por que choras? A quem procuras? Ela, supondo ser ele o
jardineiro, respondeu: Senhor, se tu o tiraste, dize-me onde o pusestes, e eu o
levarei. Disse-lhe Jesus: Maria! Ela voltando-se, lhe disse em hebraico: Raboni (que quer dizer Mestre)! Recomendou-lhe
Jesus: Não me detenhas, porque ainda não subi para meu Pai, mas vai ter com os meus irmãos [...] Então,
saiu Maria Madalena anunciando aos
discípulos: Vi o Senhor! E
contava que ele lhe dissera estas coisas.
O evangelista Marcos
esclarece no capítulo 16, que, enquanto Maria Madalena vigiava o sepulcro,
aguardando para untar o corpo de Jesus conforme as tradições da época (mirrófoba),
os discípulos estavam tristes e chorando, bem longe dali. As mulheres,
nos momentos mais difíceis da vida de Jesus, foram mais leais a Ele que os
homens que O seguiram. Não se trata aqui de exaltar o feminino nos Evangelhos,
mas apenas apontarmos os factos narrados. Maria Madalena tinha liderança entre
as demais mulheres e foi a primeira a ver Jesus após a ressurreição, foi a
transmissora da Boa Nova da ressurreição aos demais discípulos que se tornaram
os Apóstolos de Cristo. Corrobora nessas colocações Moro, que afirma: quando ela usa o termo Rabbuni, que é uma forma mais solene
de dirigir-se ao Mestre, usada quando os judeus se referiam a Deus, vemos que ela compreendeu antes de todos o
papel que Cristo passara a exercer». In Salma Ferraz, organização,
Maria Madalena das páginas da Bíblia para a Ficção, Textos Críticos, Eduem, UEM, Maringá, Brasil, 2011, ISBN
978-85-7628-334-8
Cortesia de Eduem/JDACT