Ler para Viver. In Flaubert
A Última Página
«Com uma das mãos caída ao lado do corpo e a outra apoiando a cabeça, o
jovem Aristóteles lê languidamente um pergaminho desenrolado no colo, sentado
numa cadeira almofadada, com um pé por cima do outro. Exibindo umas lunetas
encavalitadas no nariz aquilino, um Virgílio de turbante e barba volta as
páginas de um volume rubricado, num retrato executado quinze séculos após a
morte do poeta. Descansando num degrau largo, com o queixo apoiado ao de leve
na mão direita, São Domingos está absorto no livro que tem aberto sobre os
joelhos, alheado do mundo. Dois amantes, Paolo e Francesca, aconchegam-se debaixo
de uma árvore enquanto lêem um verso que os conduzirá à perdição: Paolo, à
semelhança de São Domingos, tem o queixo apoiado na mão; Francesca segura o
livro aberto, marcando com dois dedos a página que jamais alcançarão. A caminho
da escola de medicina, dois estudantes islâmicos do século XII param para
consultar um dos livros que levam consigo. Apontando para a página da direita
de um livro aberto no regaço, o Menino Jesus explica a sua leitura aos anciãos
no Templo enquanto estes, atónitos e incrédulos, voltam em vão as páginas dos respectivos
tomos em busca de uma refutação. Tão bela como em vida, observada por um atento
cãozinho de regaço, a dama nobre milanesa Valentina Balbiani folheia as páginas
do seu livro de mármore, na tampa de um túmulo que representa, em baixo-relevo,
a imagem do seu corpo descarnado. Longe da cidade movimentada, por entre areia
e penedos ressequidos, São Jerónimo, qual viajante idoso à espera do comboio diário,
lê um manuscrito em formato de tablóide, sendo escutado por um leão que se
encontra a um canto. O grande humanista Desidério Erasmo partilha com o amigo
Gilbert Cousin uma piada do livro que está a ler, aberto no atril à sua frente.
Ajoelhado por entre flores de aloendro, um poeta indiano do século XVII cofia a
barba enquanto reflecte sobre os versos que acaba de ler em voz alta para
melhor lhes captar o sabor, segurando o livro ricamente encadernado na mão
esquerda. Junto a uma estante de prateleiras toscas, um monge coreano pega numa
das oitenta mil placas de madeira da Tripitaka
Koreanea, uma obra com sete séculos de existência, e segura-a na sua
frente, lendo com atenção silenciosa. Estuda
para atingir a quietude é o conselho dado pelo artista desconhecido do
vitral que retrata o pescador e ensaísta Izaak Walton a ler um pequeno livro
nas margens do rio Itchen, perto da Catedral de Winchester.
Uma Maria Madalena nua, bem penteada e aparentemente nada arrependida, deitada
sobre um pedaço de tecido estendido sobre um penedo num ermo, lê um livro
ilustrado de formato grande. Recorrendo ao seu talento de actor, Charles
Dickens segura na mão um dos seus romances, de que se prepara para ler excertos
a um público entusiástico. Apoiado num parapeito de pedra sobre o Sena, um
jovem perde-se nas páginas de um livro (qual
será?) que segura aberto à sua frente. Impaciente ou apenas aborrecida,
a mãe segura um livro enquanto o filho, ruivo, tenta seguir as palavras com a
mão direita na página. Jorge Luís Borges, cego, fecha os olhos para melhor
ouvir as palavras de um leitor invisível. Numa floresta cheia de sombras,
sentado num tronco coberto de musgo, um rapazinho segura com ambas as mãos um pequeno
livro que está a ler em doce sossego, senhor do tempo e do espaço. Todos são
leitores, e os seus gestos, a sua actividade, o prazer, responsabilidade e
poder que obtêm na leitura partilho-os com eles. Não estou sozinho.
Descobri pela primeira vez que sabia ler aos quatro anos. Já tinha
visto vezes sem conta as letras que sabia (porque mo tinham dito) serem
os nomes das imagens debaixo das quais se encontravam. O menino desenhado em
traços negros e grossos, com uns calções vermelhos e uma camisa verde (os
mesmos tecidos vermelhos e verdes usados em todas as outras imagens do livro,
cães e gatos e árvores e mães magras e altas), era também, de alguma forma,
apercebi-me então, as formas negras e hirtas que se encontravam por baixo, como
se o corpo do menino tivesse sido esquartejado em três figuras nítidas: um
braço e o tronco, b; a cabeça
separada, tão perfeitamente redonda, o;
e as pernas, bambas e pendentes, y.
Desenhei uns olhos no rosto redondo, e também um sorriso, e preenchi o círculo
oco do tronco. Mas havia mais: eu sabia que aquelas formas não só reflectiam o menino
que se encontrava por cima delas, mas que também me podiam dizer exactamente o
que o menino estava a fazer, com os braços esticados e as pernas afastadas. O menino [boy] corre, diziam as formas.
Não estava a saltar, como eu poderia ter julgado, ou a fingir que estava
imobilizado ou a jogar um jogo cujas regras e objectivos me eram desconhecidos.
O menino corre». In Alberto Manguel, Uma História
da Leitura, Editorial Presença, Lisboa, 1998, ISBN 972-23-2339-3.
Cortesia Presença/JDACT