quinta-feira, 7 de novembro de 2013

As Ondas. Virgínia Woolf. «A erva tinge-se de riscas sombrias, e o orvalho, dançando na ponta das flores e das árvores, transformou o jardim num mosaico composto por brilhos isolados que ainda não constituem um todo. As aves, com os peitos manchados de rosa e amarelo…»

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«(…) O Sol elevou-se um pouco mais. Ondas azuis, ondas verdes, todas elas se abrem num rápido leque por sobre a praia, contornando o pontão coberto por azevinho-do-mar e deixando pequenas poças de luz aqui e ali, espalhadas na areia. Deixam atrás de si uma ténue linha desmaiada. As rochas que antes eram ténues e de contornos mal definidos, são agora marcadas por fendas vermelhas. A erva tinge-se de riscas sombrias, e o orvalho, dançando na ponta das flores e das árvores, transformou o jardim num mosaico composto por brilhos isolados que ainda não constituem um todo. As aves, com os peitos manchados de rosa e amarelo, ensaiam agora um ou outro acorde em conjunto, de forma selvagem, como grupos de patinadores, até acabarem por se calar subitamente, afastando-se. O Sol fez poisar lâminas ainda mais largas na casa. A luz toca em qualquer coisa verde poisada no canto da janela, transformando-a num pedaço de esmeralda, numa gruta de um verde-puro semelhante a um fruto suave. Tornou mais nítidos os contornos das mesas e das cadeiras, traçando fios dourados nas toalhas brancas. À medida que a luz aumentava, aqui e ali, os botões iam despertando, transformando-se em flores cobertas de veios verdes, trémulas, como se o esforço que fizeram para se abrir as obrigasse a abanar. Tudo se transformou numa massa amorfa, corno se a loiça dos pratos flutuasse e o aço das facas se tivesse tornado líquido. Enquanto isso, o bater das ondas provocava um ruído abafado, semelhante ao dos toros quando caem, e que se espalhava pela praia.
Agora, disse Bernard, chegou a hora. Estamos no dia aprazado. O táxi está à porta. O meu enorme malão torna ainda mais arquejadas as pernas do George. A horrível cerimónia chegou ao fim, os conselhos e as despedidas junto à porta. Agora, é a cerimónia das lágrimas, levada a cabo pela minha mãe, agora, é a cerimónia do aperto de mão, levada a cabo pelo meu pai; agora, vou ter de continuar a acenar, pelo menos até dobrarmos a esquina. Mas até mesmo essa cerimónia chegou ao fim. Deus seja louvado, todas as cerimónias chegaram ao fim. Estou só. Vou à escola pela primeira vez. Toda a gente perece estar a agir de acordo com o momento presente; nunca mais. Nunca mais. A urgência de tudo isto é assustadora. Todos sabem que vou à escola pela primeira vez. Aquele rapaz vai à escola pela primeira vez, diz a criada, limpando os degraus. Não devo chorar, devo encará-los com indiferença. Agora, os horríveis portões da estação abrem-se de par em par; o relógio com cara de lua olha-me. Vejo-me obriga do a fazer frases e frases, colocando assim qualquer coisa de concreto entre mim e o olhar das criadas, dos relógios, de todos aqueles rostos indiferentes. Se não o fizer, ver-me-ei obrigado a chorar. Lá está, o Louis. Lá está o Neville. Estão ambos junto às bilheteiras, envergando casacos compridos e transportando as suas malas. Têm um ar composto. Apesar disso, estão diferentes.
Aqui, está o Bernard, disse Louis. - Tem um ar composto; está à vontade. Abana a mala à medida que caminha. Dado que não tem medo de nada, o melhor que tenho a fazer é segui-lo. Somos arrastados até à plataforma como se mais não fossemos que galhos e palhinhas que a corrente faz girar em torno dos pilares de uma ponte. Lá está aquela enorme máquina, poderosa, verde-garrafa, a soprar vapor. O guarda faz soar o apito; a bandeira é descida; sem qualquer esforço, no momento exacto, como uma avalanche provocada por um pequeno empurrão, começamos a avançar. O Bernard estende uma manta e começa a estalar os dedos. O Neville lê. Londres estremece. Londres eleva-se e ondula. Ali, vê-se um amontoado de torres e chaminés. Ali, uma igreja branca; ali, um mastro por entre as espirais. Ali, um canal. Agora, surgem espaços abertos com caminhos de asfalto onde é estranho as pessoas andarem. Daquele lado, há uma colina manchada de casas vermelhas. Um homem atravessa a ponte com um cão colado aos calcanhares. Agora, um rapaz vestido de vermelho dispare contra um faisão. Um outro, vestido de azul, dá-lhe um empurrão. O meu tio é o melhor caçador de Inglaterra. O meu primo é o mestre da Liga dos Caçadores de Raposas. Começam as gabarolices. Só eu não me posso gabar, pois o meu pai é banqueiro em Brisbane e falo com sotaque australiano». In Virgínia Woolf, As Ondas, Colecção Mil Folhas, Público, Porto, 2002, ISBN 84-8130-531-6.

Cortesia de Público/JDACT