«(…)
Era uma cerimónia que se repetia todas as noites desde que se iniciara, duas
semanas antes, para estranheza das poucas almas que por acaso vinham à janela
ou cruzavam a praça naquele momento. Como uma procissão silenciosa, lá vinha o
grupo percorrendo as ruas furtivamente até chegar à igreja de São Bartolomeu,
onde se dispersava junto à entrada. Aí, os pajens e guardas encostavam-se às
portas e ficavam à conversa, aguardando que sua senhoria a condessa cumprisse
as suas orações nocturnas. Fazia-o àquela hora para evitar o bulício das horas
do dia na praça, assim como para escapar à vontade exacerbada de muitos
habitantes em saudá-la e transmitir-lhe o pesar pela morte do filho. Se saía do
castelo antes do anoitecer, era uma confusão tremenda que se gerava, e assim
preferia a tranquilidade da noite, mesmo fria e chuvosa, à tremenda choradeira
e algazarra que se erguia entre os populares, assim que punha o nariz fora da
porta do castelo. Vasco chegara a sugerir-lhe rezar em casa no oratório, mas
era ideia fixa da velha condessa, a de que seria melhor escutada na própria
casa do Senhor. Além disso fazia-a sentir-se bem passar aquela pequena provação
da caminhada à chuva, enrolada num manto pesado e de capuz às costas, como
sinal de sacrifício e entrega para que a alma de Bernardo melhor fosse acolhida
no Reino dos Céus. Mas apesar de todas as explicações e motivos, a conclusão
entre os rapazes vivaços à porta, encostados uns aos outros para se aquecerem
enquanto esfregavam as mãos enregeladas, era a de que, tal como o senhor conde
que perdera o juízo e passava as noites às voltas no salão, não era o que
diziam as mulheres na cozinha, no andar de baixo?, também dona Catarina
começava a mostrar que não estava boa das ideias.
O
que vale é que estão para ir embora, sussurrou um deles, de barrete enfiado até
às orelhas e cara muito rosada e pintalgada de sardas. Não tardava nada até
termos que começar a passear à noite o andor da igreja pela vila toda, com ela
atrás! E estava o grupo tiritante a tentar abafar os risos, quando a porta se abriu
de repente, pondo-os de imediato em sentido, pensando que a condessa, apesar de
ter entrado não tinham passado cinco minutos, estivesse já de regresso. Para
que é que estão com essas caras de defunto?, surpreendeu-os porém uma voz jovem
que lhes era familiar. Julgam que a velha não sabe que é só galhofa aqui,
enquanto ela reza? Até se conseguem ouvir os risinhos lá dentro...Que vergonha!
Já aí vem?, perguntou o mais novo, amedrontado. Se viesse, esta não estava aqui
a falar assim, disse o maior do grupo, enorme e gordo, com uma barba cerrada e
nariz adunco. Então diz-nos lá, princesa, que estás aqui a fazer? Já não ficas
lá dentro com a tua senhoria a rezar pelo seu filhinho? Agora que ela está para
se ir embora é que te fartaste de dar em beata? Finge só mais um pouco que está
quase! E enquanto soltava uma gargalhada zombeteira, os outros rapazes com a voz
ainda a mudar acompanhavam-no, rindo como gaivotas excitadas.
Cuidado
com essa língua, borrachão, disse-lhe porém a rapariga, lançando-lhe um olhar
tão carregado de fúria que logo o ar de riso se lavou da cara do soldado,
deixando-o desconcertado. Não preciso de fingir nada para lhe dizer uma palavra
e meter-te no calabouço durante um mês com uma côdea de pão, sabes bem disso,
não sabes? Apesar da diferença abismal de tamanhos, o soldado recuava com genuíno
medo, enquanto a jovem se insinuava com ar ameaçador diante de si. Era de
pequena estatura e um cabelo negro e forte, tão denso quanto as sobrancelhas
espessas que encimavam os olhos grandes e cristalinos, destacados na pele de
cor trigueira. Filha de mouros, fora educada pela condessa no castelo para a
servir como aia. Chegara a ser baptizada e quis-se-lhe dar um nome cristão, mas
desde cedo a sua rebeldia se revelou, e assim nunca permitiu, nem mesmo aos
condes, que não a chamassem outra coisa senão Amina. Apesar de mourisca, tal
como tantos outros em Arzila, desprezados pelos mouros de outras praças e desconsiderados
pelos portugueses, que os viam como cristãos de segunda, a sua personalidade
felina e a sua inteligência levaram-na a conseguir alcançar um posto de grande
relevo, junto da esposa do capitão. Muito mais do que uma simples aia, Amina
era uma força de influência dentro do castelo, e o seu nome era temido por
todos dentro de muralhas.
Sei
perfeitamente. Mas os teus dias de poder estão por um fio, moura. E depois, quero
ver quem te deita a mão, e quero ver quem e que vai precisar de mais cuidado
com a língua. Mas, Amina nada mais disse e apenas voltou costas ao grupo,
desaparecendo pela praça fora, sob uma chuva miudinha e uma névoa espessa vinda
do mar e que entretanto começara a descer sobre a vila. Para trás ficava o
grupo de soldados e pajens, intrigados pela saída abrupta, da aia, que desde que
a conheciam acompanhava sempre a condessa onde quer que esta fosse. Como pôde
ter feito uma coisa daquelas?, pensava, caminhando decidida por entre as ruas
estreitas, contornando as poças de água e lama acumuladas pelo caminho. Como
pôde, depois de tantos anos de serviço, de cuidados e atenções para que nada lhe
faltasse, depois de tantas horas a escutar os seus queixumes, sofrimentos e
reclamações, depois de uma vida a servi-la, dispensá-la agora como o mais reles
e insignificante dos lacaios? Todos aqueles rosários que desfiara noite após
noite, ajoelhada a seu lado nas tábuas geladas e desconfortáveis da igreja
repleta de humidade, não valiam agora de nada? Estás dispensada, hoje não
preciso de ti, repetiu em pensamento, sentindo a recordação das palavras frias
e impessoais com genuíno ódio, ainda mais a enfurecendo. Que golpe de traição
tão reles, deixá-la ali de pé, no corredor da igreja, esperando que terminasse
de ajudá-la enquanto ajoelhava o seu corpo frágil e seco, para depois a mandar
embora, com um gesto mecânico da mão como de quem enxota uma mosca...» In Pedro
L. Torres, Isabel, A Condessa Cercada, Saída de Emergência, 2014, ISBN
978-989-637-660-4.
Cortesia
de SEmergência/JDACT