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«A coragem que vence o medo
tem mais elementos de grandeza que aquela que o não tem. Uma começa
interiormente; outra é puramente exterior. A última faz frente ao perigo; a
primeira faz frente, antes de tudo, ao próprio temor dentro da sua alma». In Fernando Pessoa
«(…) A
segunda fenda, mas para o mundo primeira, aconteceu a muitos quilómetros de
distância, para os lados do golfo da Biscaia, não longe de um lugar
dolorosamente célebre na história de Carlos Magno e dos seus Doze Pares,
Roncesvales chamado, onde morreu Roldão a soprar no Olifante, sem Angélica ou
Durandal que lhe acudissem. Ali, descendo ao longo da falda da serra de Abodi,
pela banda do noroeste, corre um rio, o Irati, que, nascido em França, vai
desaguar no Erro, espanhol, por sua vez afluente do Aragón, o qual é tributário
do Ebro, cujo finalmente levará e lançará no Mediterrâneo as águas de todos. Ao
fundo do vale, na margem do Irati, está uma cidade, Orbaiceta de seu nome, e a
montante existe uma barragem, um embalse, como por lá lhe chamam.
É tempo de explicar que
quanto aqui se diz ou venha a dizer é verdade pura e pode ser comprovado em
qualquer mapa, desde que ele seja bastante minucioso para conter informações
aparentemente tão insignificantes, pois a virtude dos mapas é essa, exibem a
redutível disponibilidade do espaço, previnem que tudo pode acontecer nele. E
acontece. Já falámos da vara do destino, já provámos que uma pedra, ainda que
esteja afastada da linha de maré mais alta, pode vir a cair no mar ou regressar
dele, agora é a vez de Orbaiceta, onde, depois da agitação salutar causada pela
construção da barragem, há longos anos, a tranquilidade voltara a instalar-se,
cidade de província navarra, adormecida entre montanhas, agora novamente
agitada. Durante alguns dias Orbaiceta foi o centro nevrálgico da Europa, senão
do mundo, ali se juntaram membros de governos, políticos, autoridades civis e
militares, geólogos e geógrafos, jornalistas e mineralogistas, fotógrafos,
operadores de televisão e cinema, engenheiros de todas as disciplinas, vedores
e curiosos.
Porém, a celebridade de
Orbaiceta não durará muito, uns breves dias, apenas um pouco mais que as rosas de
Malherbe, e como poderiam estas durar sendo de má erva, mas de Orbaiceta
falamos, que de aí não, foi só até ter-se declarado, em outra parte, uma
celebridade maior, é sempre assim com as celebridades. Na história dos rios
nunca acontecera um tal caso, estar passando a água em seu eterno passar e de
repente não passa mais, como torneira que bruscamente tivesse sido fechada, por
exemplo, alguém está a lavar as mãos numa bacia, retira a válvula do fundo,
fechou a torneira, a água escoa-se, desce, desaparece, o que ainda ficou na
concha esmaltada em pouco tempo se evaporará. Explicando por palavras mais próprias,
a água do Irati retirou-se como onda que da praia reflui e se afasta, o leito
do rio ficou à vista, pedras, lodo, limos, peixes que saltando boquejam e
morrem, o súbito silêncio.
Os engenheiros não
estavam no local quando se deu o incrível facto, mas aperceberam-se de que
alguma coisa anormal acontecera, os mostradores, na bancada de observação, indicaram
que o rio deixara de alimentar a grande bacia aquática. Num jipe foram três
técnicos averiguar o intrigante sucesso, e, durante o caminho, pela margem do
embalse, examinaram as diversas hipóteses possíveis, não lhes faltou tempo para
isso em quase cinco quilómetros, e uma dessas hipóteses era que um desabamento
ou escorregamento de terras na montanha tivesse desviado o curso do rio, outra que
fosse obra dos franceses, perfídia gaulesa, apesar do acordo bilateral sobre
águas fluviais e seus aproveitamentos hidroeléctricos, outra, ainda, e a mais
radical de todas, que se tivesse exaurido o manancial, a fonte, o olho-d'água,
a eternidade que parecia ser e afinal não era.
Neste ponto dividiam-se as opiniões. Um dos
engenheiros, homem sossegado, da espécie contemplativa, e que apreciava a vida
em Orbaiceta, temia que o mandassem para longe, os outros esfregavam de
contentamento as mãos, podia ser que viessem a transferi-los para uma das
barragens do Tejo, o mais perto de Madrid e da Gran Vía. Debatendo estas
ansiedades pessoais chegaram à ponta extrema do embalse, onde era o desaguadouro,
e o rio não estava lá, apenas um fio escasso de água que ainda ressumbrava das
terras moles, um gorgolejo lodoso que nem para mover uma azenha de brincar
teria força, Onde é que raio se meteu o rio, isto disse o motorista do jipe, e
não se poderia ser mais expressivo e rigoroso. Perplexos, atónitos,
desconcertados, inquietos também, os engenheiros voltaram a discutir entre si
as já explicadas hipóteses, posto o que, verificada a inutilidade prática do prosseguimento
do debate, regressaram aos escritórios da barragem, depois seguiram para
Orbaiceta, onde os esperava a hierarquia, já informada do mágico
desaparecimento do rio. Houve discussões ácidas, incredulidades, chamadas telefónicas
para Pamplona e Madrid, e o resultado do fatigante trabalho e trato veio a
exprimir-se numa ordem muito simples, disposta em três partes sucessivas e
complementares. Subam o curso do rio, descubram o que aconteceu e não digam
nada aos franceses». In
José Saramago, A Jangada de Pedra, Editorial Caminho, 1986, 16ª Edição,
Reunidos, Lisboa, 2010, ISBN 978-972-210-289-6.
Cortesia de
Caminho/JDACT